Entrevista com Silvana de Souza Ramos: A Filosofia é Perigosa?

Foto Ingrid Morais

Por Ingrid Morais

 

Silvana de Souza Ramos é mestre, doutora e pós-doutora pela Universidade de São Paulo. Fez doutorado-sanduíche na Université Paris I – Panthéon/Sorbonne (2008-2009), sob supervisão de Renaud barbaras. Fez estágio como Visiting Professor na Università Ca\’Foscari (2017), onde lecionou sobre o tema do totalitarismo. Dirige o Grupo de Estudos de Política e Subjetividades (DF/USP), do qual participam seus orientandos de graduação e de pós-graduação. É também membro dos seguintes Grupos de Trabalho: GT Filosofia Francesa Contemporânea e GT Raça, Gênero e Classe, e uma das administradoras da Rede Brasileira de Mulheres Filósofas. Atualmente estuda a obra de Gilda de Mello e Souza, filósofa e crítica de arte brasileira, e prepara um filme sobre a obra das filósofas no Brasil.

Mundo Lusíada: Uma filósofa poderia nos explicar os motivos da crescente onda conservadora vista no cenário político atual?

Silvana Ramos: Essa onda conservadora tem um tempo. Teve toda uma discussão se isso era característico do Brasil e da América Latina. Parecia que essa onda conservadora tinha um teto na Europa mas agora ela também está avançando. Acabou de acontecer nas eleições em Portugal. A gente viu que os conservadores conquistaram mais cadeiras. Eles terão muito mais poder. São sempre sinais, né? De que há uma força política da direita e da extrema direita, mais especificamente. Devemos pensar que a democracia tem muitos espectros políticos. A democracia não é feita só da esquerda. Ela é feita do centro, feita de acordos de classe, é assim que funciona a democracia hoje no mundo. Esse é o modelo que temos. O que nos preocupa são os movimentos de extrema direita exatamente porque eles não são democráticos. Eles ameaçam o próprio sistema. Então é nesse sentido que a gente se preocupa com esses movimentos(…)
O que podemos dizer sobre isso? Eu acho que podemos pensar o seguinte: primeiro a gente teve um período de maior robustez das democracias no mundo. Eu acho que isso é inegável. Houve um avanço nas Constituições, dos direitos, articulações de luta por direitos inovadoras pelo menos desde os anos 1960… desde os movimentos de maio de 1968. Então temos uma articulação dos povos indígenas, dos povos originários, das mulheres, do movimento dos homossexuais, a gente tem uma série de movimentos que efetivamente conquistaram novos direitos. E isso do ponto de vista dos costumes, sempre gera o que podemos chamar de uma contra-revolução. Um movimento de resistência. Num movimento comportamental de resistência há esses avanços, né? Por diversidade, avanços dos direitos, etc. junto com uma escassez de riquezas naturais. De repente começa a faltar água, faltar ar, não tem mais florestas, nem terra fértil, porque a gente tem terra, terra, terra, mas se fica sugando a terra, não é?
Temos um modelo agroecológico insustentável e uma série de problemas junto às ondas conservadoras.(…)
E no momento em que poderíamos dar passos importantes na conquista de direitos das mulheres vem esse processo que mistura política, economia e religião. Mais uma vez penalizando as mulheres, negando à elas o direito ao seu corpo, direito de ir e vir… é impressionante a quantidade de casos de estupro coletivo que a gente vem assistindo. E de feminicídio também. Isso tudo é discurso, é ideologia, circula como ideia, mas efetivamente mata. Para as mulheres comuns isso significa muito perigo. Temos medo de sairmos na rua à noite, sabemos que é perigoso pegar um Uber sozinha. Tudo isso é efetivamente perigoso. Isso se replica na política. A política é um espelho adensado das nossas relações sociais. Então se a gente vive risco pras mulheres, perigos pras mulheres, falta de direitos das mulheres, demonização das mulheres no espaço social, no espaço político isso também vai acontecer.(…)
A esquerda tendeu a dar muito mais espaço para as mulheres, mas hoje já não vemos tanto isso. Inclusive, tem uma resistência, um medo de “ah, se a gente trouxer a pauta das mulheres pode ser que isso cause muita resistência por parte do público conservador”. Então vamos calar as mulheres. Isso é clássico. Desde a Revolução Francesa que a Olympe de Gouges foi morta porque defendeu a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã. Então isso não é de agora. Temos uma fragilização da posição das mulheres no campo da esquerda e no campo da direita um discurso horroroso contra o reconhecimento da gravidade da violência de gênero. Houve muita resistência pra se aceitar o termo e a legalidade da ideia de feminismo, né? De feminicídio. A tese de feminicídio. Essa foi uma conquista muito importante, mas houve e ainda há muita resistência. Essas pautas que são as pautas das mulheres realmente, elas não terão espaço dentro da direita e da extrema direita, muito menos. No lugar disso, você tem a ascensão de mulheres conservadoras. Falamos muito para quem estuda Política que a representação política não é uma mera identidade. Então uma mulher vai lutar por mulheres. Geralmente os homens lutam por homens, pelo masculino. Mas o oposto não acontece. Nem sempre você põe uma figura que é excluída ou que é vulnerável socialmente e ela milita ou trabalha em função dessa representação. Nem sempre. Não é uma questão identitária, é uma questão mais complexa.

ML: O ensino da filosofia em Portugal tem uma tradição secular o que levou a UNESCO a apresentá-lo como exemplo ao aconselhar a sua obrigatoriedade nos variados sistemas de ensino em todo o mundo. No Brasil, por um longo período da história, foi disciplina proibida da grade curricular. A filosofia é perigosa?

SR: Coincidentemente toda vez que temos um regime autoritário tira-se a filosofia das escolas. Isso me faz deduzir que a filosofia é perigosa. Meus alunos me perguntam: “- Quando alguém me perguntar pra que serve a filosofia, o que eu respondo?” Responda que não serve pra nada. Porque a filosofia não serve em nada, não serve a ninguém. A filosofia é a liberdade de pensar. Então aprendemos coisas que servem, que bom, a temos que ser úteis no mundo. Temos que aprender coisas, aprendermos um oficio. Aprender matemática, aprender a falar corretamente, tudo isso é importante. Mas é preciso ter um espaço pra liberdade de pensamento. “Ah, tá todo mundo falando tal coisa…” Deixa-me pensar porquê estão falando isso, de onde vem. O que está por trás dessa discussão? Então é isso o que a filosofia faz.

ML: O que é ser mulher pra você?

SR: Primeira coisa que eu diria: a gente não deve dar uma definição rígida. Eu fico com a definição da Simone de Beauvoir – “ser mulher é um tornar-se mulher”. É um devir, uma construção. É uma construção social, mas também uma construção individual. São essas duas coisas cruzadas. A grande luta das mulheres é para se livrar cada vez mais de todas as cobranças que pesam sobre elas. Ao mesmo tempo que a gente é muito cobrada, tem que ser perfeita, tem que ser isso, tem que ser aquilo, isso é exigido de nós, não temos nenhum reconhecimento por nada do que fazemos. Vou falar de uma coisa muito feminina que é o trabalho doméstico. Angela Davis tem um texto em seu clássico “Mulheres, Raça e Classe” sobre o trabalho doméstico que chama-se “A obsolescência das tarefas domésticas”. Ela diz que o trabalho doméstico é um trabalho improdutivo porque não produz alguma coisa. Arrumei a casa, arrumei o armário… e ele só é visível quando não é feito. Eu acho que isso define a existência da mulher. Porque quando ela não faz, quando ela falha, todo mundo aponta. Quando ela faz é a normalidade, não tem nenhum reconhecimento por aquele trabalho. Reconhecimento é quando eu tenho uma posição social que é reconhecida socialmente. O reconhecimento não é só uma coisa individual, vem de socialmente eu compreender que ali foi feito um trabalho importante e aquilo ser visível. Por isso que os homens não querem fazer o trabalho doméstico. Porque é o trabalho invisível. Eles são criados para o reconhecimento, para a visibilidade pública. Agora quando elas vão pro espaço público continua acontecendo a mesma coisa. Elas continuam ali fazendo o trabalho de apoio, muitas vezes o da criação, mas quem expõe é o homem.

 

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