Em meio a lama do período eleitoral, surge a primeira presidenta do Brasil

Neste último domingo de outubro foi concluída a mais dura disputa presidencial dentro da jovem democracia brasileira. E o resultado foi o esperado. Aquele indicado pelas pesquisas desde o primeiro turno, ou seja, que a candidata Dilma Rousseff, do PT, venceria. Só não se tinha certeza de quanto, fato que se resolveu nas últimas horas do próprio dia 31/outubro. E a vontade popular cravou, segundo o TSE, para 99,5 milhões de votos apurados, 56% x 44%, isto é, 12 milhões de diferença a favor da sucessora de Lula. Será a primeira presidenta em 122 anos de república.

Dilma ganhou em 16 e foi derrotada em 11 estados da federação. A massa de votos a fez vencedora na região Norte, Nordeste e Sudeste. Perdeu no Centro-Oeste e no Sul. Então, quando jogamos nosso olhar de forma mais atenta e seletiva, podemos perceber que nas 10 cidades mais ricas do país ela venceu em apenas 4: Rio de Janeiro, Brasília, Manaus e Duque de Caxias (RJ). E perdeu, diga-se, não ‘de goleada’, nas seis demais, incluindo São Paulo, que terminou 46% X 54%. Menos impactante, inclusive, que o resultado total entre os dois no país. E, por outro lado, ela venceu em absolutamente todos os 10 municípios mais pobres. E nove deles disparada na frente.

O que isto nos revela? Pura e simplesmente que o povo reconheceu que algo mudou para ele. Que, se não chegamos ao desejado paraíso, ao menos já está dando para sonhar com alguma coisa. Milhões esperançosos ainda aguardam sua escapada da miséria. Diferente dos últimos 30 anos pré-Lula. E foi uma vitória dupla do presidente, afinal, provou que conseguiria fazer seu sucessor – coisa que muitos não acreditavam até ano e meio atrás – e se consagra, segundo as pesquisas, como o governo mais popular já existente. Na última semana de outubro o Datafolha dava 82% de ótimo e bom para o ex-sindicalista. Um estadista de reconhecimento internacional.

Agora, Dilma tem nas mãos a esperança da massa de brasileiros. Dos que votaram ou não. Ela será a Presidenta de todos. A primeira a alcançar este cargo em um país ainda com grande discriminação de gênero, onde a violência contra a mulher é gritante. Em dez anos, dez mulheres foram assassinadas por dia no Brasil, média que fica acima do padrão internacional. A motivação é, geralmente, passional. Entre 1997 e 2007, 41.532 mulheres morreram vítimas de homicídio: índice de 4,2 assassinadas por 100 mil habitantes. Dados do “Mapa da Violência no Brasil 2010”. Ela tem muito trabalho pela frente, sem a menor sombra de dúvidas.

Mas, mesmo com a festa das eleições, cada vez mais consolidada no Brasil, outro aspecto é importante destacar na experiência deste pleito presidencial 2010. Seu tom acirrado em boa parte das vezes descambou para o baixo nível e, muito perigosamente, trouxe à tona uma porção muito desagradável de preconceitos e racismo. Além disso, mostrou a grande imprensa fazendo o papel nítido de oposição, ocupando o espaço que deveria ser dos partidos políticos. Coisas que preocupam.

Com o cenário favorável a Dilma foi clara a dificuldade que os partidos oposicionistas tiveram em montar uma proposta alternativa e viável que conseguisse convencer os eleitores. A confusão foi tamanha que Serra, a candidatura mais expressiva da oposição, chegou a ter imagens de Lula ao seu lado em publicidades. Os tucanos, liberais, que tanto criticaram o ‘Bolsa Família’, que achataram aposentados e o mínimo, acabaram por colocar em suas propostas, em evidente desespero de causa, aumentos nos referidos itens. Contraditório. E, como a coisa não funcionou, lembrando que o segundo turno só aconteceu porque Marina Silva, no PV, captou votos de indecisos, ambientalistas e moralistas de plantão, este último item, comportamental, acabou por se tornar opção forte para os correligionários da oposição.

A questão do aborto, tema seriíssimo e complexo, que deveria ter um fórum próprio de discussão, foi tomada de assalto sem as devidas condições de conversa. Movimentos reacionários religiosos trataram de colocar mãos à obra. Pularam dentro unindo desde católicos a evangélicos. Panfletos, e-mails, correspondências circularam com força. E na salada de impropérios contra Dilma destaques para o rótulo de terrorista e acusações machistas de toda espécie. E a grande mídia tratou de aproveitar o ensejo para apenas vender suas notícias.

Em raras ocasiões se pode perceber intenções de análise de projeto, discussões macroeconômicas, abordagens sobre infra-estrutura, relações internacionais entre outras em nível decente e que, de fato, seriam pertinentes a uma discussão de executivo federal. Alguns da imprensa falaram que a eleição virou um ‘Fla-Flu’, referindo-se a um clássico carioca de futebol. Mas, na verdade, a grande mídia jogou mesmo foi a favor da oposição. Que, aliás, precisa se repensar e se renovar.

A professora Maria Rita Kehl foi demitida em São Paulo por escrever no jornal sua posição na eleição. E era contra Serra. Outro lance simbólico foi o da bolinha de papel. A Globo fez um grande esforço em provar que o tucano levou algum objeto contundente na cabeça enquanto caminhava num bairro popular carioca. Deu até exame de tomografia. Um trapalhada inoperante. Mais: a Folha descobriu e segurou as suspeitas de problemas nas verbas do metro até acabar o primeiro turno, para não prejudicar o candidato ao governo em São Paulo. Tem também o pleno ignorar das matérias de denúncias da revista Carta Capital contra a filha de Serra e por aí adiante. A grande mídia oligopólica criou a sua censura particular: articulada, cala quem deseja e publica o que bem entende. Isto tem que ser revisto. Todos os fatos devem ser apurados. É preciso democratizar o setor. Não podem estar acima dos outros poderes e, substancialmente, precisam cumprir com o papel de servir à população.

E não é só. Assim que as eleições terminaram e o resultado da apuração mostrou o fato, nas redes sociais pipocaram entre orkuts, facebooks e twitters, uma porção de manifestações contra os nordestinos, vistos como ‘responsáveis’ pela vitória da petista. Coisa, óbvio, de quem é truculento e não sabe fazer conta de somar. Sem o Nordeste no mapa ela também venceria. Com uma margem menor. Mas, levaria a faixa de todas as formas. Inútil ignorar isto. Frases como ‘matar um nordestino por dia para limpar São Paulo’ e coisas afins remontam aos sombrios anos 1930, quando os nazistas assombraram a Alemanha. São ressonâncias ainda do calor da campanha. E tais manifestações não podem ficar sem impunidade. Depois de nordestinos podem ser negros, homossexuais, bolivianos, mendigos etc. É preciso o rigor da lei para o caso. Então, esta eleição trouxe, assim, mais um fato novo além da primeira presidenta: a tão falada ‘cordialidade’ do brasileiro está posta em xeque.

A jovem democracia brasileira em festa não pode, entretanto, deixar barato xenofobias e separatismos. Somos um povo único e diferente dos outros exatamente porque fomos estruturados pelo tripé índio, negro e branco, quer queiram, quer não. Somos mestiços. E brasileiros. Todos. De norte a sul do país. O regime republicano precisa, portanto, reagir contra estas posições propostas por maus cidadãos e punir os irresponsáveis. Inclusive a própria mídia deveria se manifestar nesse sentido. Aqui sim fazer barulho. Precisamos cuidar bem dela: a democracia custou caro ser reconquistada e tem muito ainda que avançar. Boa sorte, presidenta.

São Paulo, 3 de novembro de 2010.

Prof. José de Almeida Amaral JúniorProfessor universitário em Ciências Sociais; Economista, pós-graduado em Sociologia e mestre em Políticas de Educação; Colunista do Jornal Mundo Lusíada On Line, do Jornal Cantareira e da Rádio 9 de Julho AM 1600 Khz de São Paulo.

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