Da Redação
Mais de 600 pessoas, entre estudantes, docentes, técnicos e comunidade local, sentadas, em pé e acomodadas nos degraus, lotaram o auditório da Universidade de Brasília, ávidas para ouvir o autor moçambicano Mia Couto. O escritor encerrou as atividades da 19ª Semana Universitária da UnB (Semuni) no último dia 27, mesmo dia em que recebeu da UnB o título de Doutor Honoris Causa.
“O Brasil é uma pátria que inventei para mim. Os que escreviam e cantavam a nação brasileira tatuaram para sempre na minha alma esse sabor de conhecer outro lugar”, declarou durante a homenagem.
“Faz todo o sentido estarmos nesta instituição de ensino celebrando a literatura e a poesia. Arte é um modo de entender e expressar o mundo. Arte e ciência nascem do pensamento crítico e celebram a diversidade”, declarou o autor, também formado em Biologia e ativista ambiental. Escritor moçambicano mais traduzido no mundo, com publicações em 24 países, foi vencedor do prêmio Camões em 2013 e está entre os dois autores de língua portuguesa premiados com o Neustadt International Prize for Literature, tido como o Nobel Americano.
Mia Couto, que é também membro da Academia Brasileira de Letras, discursou em favor das artes e das ciências humanas e ressaltou as riquezas do povo brasileiro, incluindo entre elas a diversidade racial e religiosa. “A grande riqueza de uma nação são as pessoas, com sua criatividade, sua eterna festa e sua imaginação”, afirmou. O defensor da democracia e da liberdade deixou uma mensagem de união e de luta pela equidade. “Esperamos que os escritores e as universidades possam contribuir, sem medo e sem censura, para uma sociedade mais humana e mais justa.”
À frente da cerimônia, a reitora Márcia Abrahão mencionou que a proposição do título reforça o papel de vanguarda da Universidade de Brasília na formação cidadã e humanista, como preza Mia Couto e, também os fundadores da instituição, Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira. A gestora lembrou o atuação essencial da classe artística e da universidade na consolidação da democracia no Brasil, considerada ainda jovem, assim como em Moçambique. Ao novo honoris causa, agradeceu as contribuições deixadas nesse âmbito.
“Mia Couto é um cidadão da república mundial das letras, um artífice da palavra, que transforma em arte literária as contraditórias dimensões da condição humana, a partir do seu referencial africano primordial”, descreveu o professor do Instituto de Letras (IL) Edvaldo Bergamo. Membro da comitiva do homenageado e orador da solenidade, o docente resgatou a poética para expressar o apreço pelo trabalho e pela figura do escritor com grande prestígio na literatura de língua portuguesa.
As relações pessoais
Mais tarde em sua palestra, e munido do conhecimento como biólogo, o autor disse que os humanos, diferente das outras espécies, conseguem banalizar os encontros entre si e ignorar uns aos outros. Para ele, uma razão para essa indiferença pode ser o excesso de foco autocentrado.
“Hoje existe lucrativo mercado de autoimagem, com as redes sociais que a tudo forma imagem e registro. O tempo todo a pessoa parece estar dizendo ‘aqui estou eu’”, afirmou. Para ele, essa manifestação parece demonstrar algo de desesperado, numa tentativa de reafirmação de identidade.
Há também, na observação de Couto, algo que ele chama de cegueira seletiva, em que as pessoas, baseadas em estereótipos, evitam olhar ao outro. “Não olham porque parece que já conhecem as pessoas antes. É como se surgíssemos como representantes dessas categorias estereotipadas”, descreveu.
“Precisamos sim da companhia real e corpórea do outro e da troca dos olhares. É o olhar que nos abraça”, disse. Apesar disso, para o autor, na atualidade o que vemos são políticas que propõem estimular o afastamento e a diferença, com base na razão da força, do ódio e do silêncio.
O cenário social e político descrito pelo autor é marcado por forças que usam o ódio como ferramenta. “Nossos políticos são fabricantes de inimigos e de ameaças. Deixaram de produzir pensamentos. A tática é simples: aos sermos dominados pelo terror, nós ignoramos a razão da luz. Por isso atacam a razão, a ciência a liberdade e a democracia”, decretou. “Quero que nosso encontro hoje possa ser um contraponto.”
AFRICANIDADES – Natural de Beira, cidade ao litoral moçambicano, António Emílio Leite Couto decidiu se aventurar no universo da escrita ainda jovem e descobriu nele sua verdadeira paixão. As vivências no país inspiram suas narrativas, que entrecruzam o recente passado colonial, as adversidades contemporâneas e as riquezas da região austral africana. Moçambique também está presente em suas histórias com um olhar de sensibilidade, atento à figura humana pela ótica da cotidianidade e da diversidade étnica, linguística e cultural local, mas também da memória, mitos, ritos de matriz africana.