Da Redação
Há quase 4 décadas, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO-ONU) celebra não apenas a sua fundação, ocorrida em 16 de outubro de 1981, mas também o Dia Mundial dos Alimentos. Com o tema “Crescer, nutrir, sustentar. Juntos.”, o dia chamou a atenção para a necessidade de uma solidariedade global que auxilie os países, especialmente os mais vulneráveis, a se recuperarem da crise de socioeconômica e de saúde provocada pelo Covid-19.
Segundo o The Good Food Institute (GFI), em 2019 a ONU divulgou um estudo afirmando que mais de 820 milhões de pessoas passam fome no mundo todo. Só na América Latina e Caribe, são 42,5 milhões. Com a previsão de que até 2050 a população global deve chegar a quase 10 bilhões de pessoas, os números são ainda mais preocupantes.
Para alimentar a todos será necessário aumentar a produção de alimentos em 70%. Ainda que os progressos tecnológicos tenham melhorado a produtividade agrícola, fazendo com que hoje seja possível produzir comida suficiente para todos, os desequilíbrios nos sistemas alimentares levam a crer que aumentar a produção nesta quantidade, não será tarefa fácil.
Os desafios incluem elevar a produtividade de alimentos de maneira sustentável, a fim de diminuir os impactos ambientais, redobrar os cuidados para evitar a contaminação de alimentos que podem propagar doenças em humanos e animais, utilizar os recursos naturais disponíveis sem esgotá-los e ainda assim possibilitar que nenhum ator dessa imensa cadeia produtiva seja prejudicado com as transformações necessárias.
A demanda por carnes será especialmente afetada. Isso, porque exigirá a criação e o confinamento de ainda mais animais, aumentando os riscos de transmissão de doenças para seres humanos. O Covid-19 foi provocado pelo consumo e comercialização de animais silvestres, assim como a AIDS, o Ebola e outras pandemias. Ao mesmo tempo, há organismos capazes de gerar doenças que surgem nas produções de animais para consumo, como é o caso da gripe aviária, gripe suína e gripe espanhola. De acordo com a OMS, 60% das novas doenças infecciosas se originaram em animais. A produção de alimentos tem sido uma das mais importantes rotas de transmissão dessas doenças, também pelo uso intensivo de antibióticos na produção animal.
Como resultado, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), quase uma em cada 10 pessoas adoece e 420 mil morrem todos os anos devido à ingestão de água ou alimentos contaminados por bactérias, vírus, parasitas ou substâncias químicas.
Há, ainda, um grande risco de insegurança alimentar (falta de comida) associado às pandemias animais. No ano passado, a Peste Suína Africana dizimou criações de porcos na China, fazendo com que o país tivesse que comprar alimentos no exterior, gerando um aumento do preço da carne no mundo todo. De acordo com o jornal britânico The Guardian, mesmo abatendo todos os porcos vivos no mundo não seria possível suprir a demanda chinesa. Em maio de 2020, a Índia reportou mais de 11 surtos da mesma doença, considerada o maior impacto na produção de proteína global (maior do que o Covid-19).
Além da insegurança, há um grande problema relacionado à perda e o desperdício de alimentos. Segundo a FAO-ONU, 1,3 bilhão de toneladas de comida é desperdiçada ou se perde ao longo das cadeias produtivas de alimentos todos os anos. O volume representa 30% de todo alimento produzido por ano globalmente. O desperdício é responsável por 46% da quantidade de comida que vai parar no lixo. Já as perdas — que ocorrem sobretudo nas fases de produção, armazenamento e transporte — correspondem a 54% do total.
África atual
Em uma pesquisa recente realizada pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) entre 2,4 mil pessoas em dez países africanos, foi constatado que, desde o início da pandemia, 94% dos entrevistados informaram que os preços dos alimentos e de outros artigos essenciais em seus mercados locais aumentaram. Enquanto isso, 82% disseram que teve uma perda de renda ou receita. Apenas 7% disseram que tinham economias suficientes para enfrentar uma crise prolongada.
“O risco é que, à medida que os preços dos alimentos aumentam e a renda das pessoas diminui, vejamos um aumento na desnutrição, porque as famílias não podem comprar comida suficiente ou porque os alimentos que podem pagar não são ricos em nutrientes”, disse o analista de Segurança Econômica do CICV para a África, Pablo Lozano.
Na região atingida por conflitos do nordeste da Nigéria, o CICV observou um aumento nas taxas de desnutrição entre as crianças que se encontram nos centros de nutrição que a organização apoia. O número de crianças incluídas no programa de nutrição ambulatorial cresceu 20%, enquanto o de casos de desnutrição grave aumentou 10% em comparação com o mesmo período do ano passado. Foi registrado aumento do número de pacientes, embora o programa de apoio comunitário do CICV, que normalmente é a ferramenta mais eficiente para identificar a desnutrição, tenha sido suspenso devido à Covid-19.
“Estamos muito preocupados com essa tendência, em especial em Maiduguri”, disse o nutricionista do CICV Thomas Ndambu. “Estou convencido de que, quando os voluntários da Cruz Vermelha Nigeriana retomarem seu trabalho de apoio comunitário, o número de casos registrados de desnutrição aumentará”.
Foi observada uma tendência semelhante na Somália. O CICV e o Crescente Vermelho Somali observaram um aumento nas admissões em seus programas de alimentação complementar este ano. Em 2020, foram atendidas 17 mil crianças desnutridas menores de cinco anos, e mulheres grávidas e lactantes nos primeiros seis meses de 2020, em comparação com 11,9 mil em todo o ano de 2019.
A expectativa é que o número de casos de desnutrição na Somália continue a subir no último trimestre de 2020, enquanto o país ainda sofre com violência, conflitos, inundações e gafanhotos, além das complicações ocasionadas pela Covid-19.
Enquanto isso, em Burkina Faso, onde a violência aumentou apesar da pandemia, estima-se que cerca de 2,8 milhões de pessoas, muitas obrigadas a se deslocarem de suas casas, enfrentem crises de insegurança alimentar ou pior, que isso represente um aumento de mais de 200% em relação ao mesmo período do ano passado, de acordo com a Classificação Integrada de Fases da Segurança Alimentar (Escala IPC) .
Em uma pesquisa SMART realizada em agosto de 2020 em 11 municípios foi, possível identificar que 11% das crianças menores de cinco anos e mulheres grávidas e lactantes sofrem de desnutrição aguda moderada e 3% sofrem de desnutrição aguda grave.
No Chade, a situação se agravou drasticamente em 2020, devido à situação de segurança altamente volátil em partes do país, que forçou as pessoas a deixarem suas casas, muitas vezes mais de uma vez. A Covid-19 e os choques climáticos, como secas e inundações, também contribuíram. Na região do Lago Chade, estima-se que 65% das famílias no país vivem com apenas USD 2 por dia.
As inundações também aumentaram os já surpreendentes níveis de insegurança alimentar e de desnutrição no Sudão do Sul, onde estima-se que mais da metade dos 11 milhões habitantes do país enfrente uma grave insegurança alimentar. O conflito prolongado e a violência armada afetaram os meios de subsistência durante décadas e forçaram milhões de pessoas a fugir de suas casas e abandonar suas plantações.
Os mercados são frequentemente destruídos em confrontos armados, o que interrompe o acesso das pessoas aos alimentos. Se as fronteiras fossem fechadas devido à Covid-19, o Sudão do Sul enfrentaria consequências dramáticas e o nível de insegurança alimentar aumentaria significativamente, já que muitos dos alimentos do país são importados.
Apesar da pandemia, o CICV continua fornecendo alimentos às comunidades que enfrentam conflitos e violência na África, bem como trabalhando com as Sociedades Nacionais da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho e com clínicas e centros de saúde locais para tratar a desnutrição moderada e grave.
Soluções em curso
Cada vez mais os produtores, indústria, governos e cientistas se unem para elaborar soluções que possam permitir o aumento da produção global de alimentos de forma mais sustentável. Podemos citar melhorias nas práticas de manejo, estudos para aumento sustentável de produtividade no campo, implementação de novas tecnologias agrárias e, também, o desenvolvimento de novas fontes de proteína. Nesse sentido, o fortalecimento da indústria de proteínas alternativas é um dos caminhos necessários para o futuro da alimentação no mundo.
Essa indústria não tem o objetivo de atender apenas uma demanda de nicho do mercado vegetariano. A meta é entregar alimentos que possam ser consumidos por todas as pessoas, com as características de sabor, aroma e textura daqueles que são consumidos em larga escala. “Os substitutos vegetais análogos à carne ou mesmo a tecnologia de carne cultivada a partir de células são bons exemplos desse esforço: o objetivo é permitir que as pessoas continuem comendo o que gostam, mas com uma nova tecnologia.”, explica a diretora de Ciência e Tecnologia do GFI Brasil, Katherine de Matos.
Um estudo realizado pela Beyond Meat em parceria com a Universidade de Michigan afirmou que, em comparação com a produção de um bife animal, a carne vegetal emite 90% menos gases de efeito estufa, 99% menos água, 93% menos terra e 46% menos energia. Além disso, pode trazer inúmeros benefícios econômicos, incluindo a geração de renda. De acordo com o Fórum Econômico Mundial, ainda que a substituição de dietas baseadas em carnes, aves, peixes e produtos lácteos possa levar a cerca de 4,3 milhões de perdas de empregos na região até 2030, a adoção de alimentos vegetais cultivados com métodos agrícolas sustentáveis pode gerar 19 milhões de novas oportunidades de trabalho.
Nessa lógica, o Brasil pode assumir uma posição de liderança global. “Temos tudo o que é necessário para o bom desenvolvimento do setor: um agronegócio forte, estrutura logística para distribuição global de produtos, clima favorável à produção e um enorme capital intelectual ligado à produção de alimentos”, afirma o diretor executivo do GFI Brasil, Gustavo Guadagnini.