Mundo Lusíada com Lusa
Pesquisadoras brasileiras declararam que a desflorestação na Amazônia brasileira, com um novo recorde em janeiro, torna cada vez mais possível que a próxima pandemia possa surgir da maior floresta tropical do mundo.
“Não temos como prever, mas se continuarmos a desmatar às taxas atuais, é totalmente plausível que a próxima pandemia venha da Amazônia”, disse Mariana Vale.
Para a professora de ecologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro, a desflorestação em zonas tropicais “é talvez das maiores fontes de emergência de novas doenças, senão mesmo a maior”.
A desflorestação na Amazônia brasileira disparou em janeiro e bateu um novo recorde, com 430 quilômetros quadrados de vegetação nativa destruídos, um aumento de 419% em relação ao mesmo mês de 2021, de acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais do Brasil.
Ainda assim, a Amazônia mantém cerca de 80% da cobertura vegetal original, sublinhou Mariana Vale.
“O potencial está lá, temos um ‘reservatório’ de diferentes vírus em animais selvagens que estão lá a viver, na boa, sem incomodar ninguém”, disse Márcia Castro, que tal como Mariana Vale, participou num estudo, publicado no jornal científico Science Advances, sobre prevenção de pandemias.
Epidemiologistas, economistas, ecologistas e biólogos ligados à conservação da natureza, em 21 instituições nos Estados Unidos, na China, no Brasil, na África do Sul e no Quênia, trabalharam durante quase um ano naquele estudo.
“Mas à medida que começamos a invadir o ambiente deles” aumenta a possibilidade de vírus ainda desconhecidos infectarem seres humanos, sublinhou a especialista em demografia na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos.
Especialistas brasileiros já identificaram alguns vírus em animais selvagens, como pássaros e morcegos, que pontualmente infectaram pessoas.
“O que pode acontecer é um evento em que a infecção acontece sem ser notada. Veja o que aconteceu com o vírus do zika, que no começo parecia uma dengue estranha, ou com o covid-19, uma doença que tem manifestações sem sintomas, e se foram espalhando silenciosamente”, lembrou Márcia Castro.
A próxima pandemia “pode ter proporções maiores” do que a covid-19, uma doença “altamente transmissível, mas cuja taxa de letalidade é baixa”, avisou Mariana Vale, que apontou para o caso do ébola, um vírus “altamente letal”.
O aumento da desflorestação na Amazônia, causada principalmente pela mineração ilegal e pelo comércio ilícito de madeira, tem sido atribuído por ambientalistas à flexibilização das medidas de controle e fiscalização durante o Governo do Presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, que defende a exploração econômica da Amazônia e o fim da demarcação de novas reservas indígenas.
“O Brasil é capaz de controlar a desflorestação”, defendeu Mariana Vale, lembrando que, entre 2005 e 2012, o país “reduziu em 70%” a desflorestação graças a políticas públicas que incluíam monitorização por satélite.
“O Brasil está indo novamente em contramão”, lamentou Márcia Castro. “Os modelos de desenvolvimento para a Amazônia são totalmente errados, focam-se na exploração, ignorando por completo a população, as necessidades e o conhecimento locais”, considerou.
Além dos indígenas, “vai sofrer o mundo, porque o que acontece na Amazônia afeta o regime climático muito para além da América do Sul”, avisou a investigadora.
Prevenir
Investir na prevenção de pandemias menos de 10% das perdas econômicas causadas por doenças como a covid-19 podia salvar 1,6 milhões de vidas por ano.
De acordo com o estudo, investir cerca de 20 mil milhões de dólares (17,6 mil milhões de euros) na prevenção de pandemia podia poupar ao mundo cerca de 10 biliões de dólares (8,8 biliões de euros) em custos ligados à mortalidade.
O investimento podia permitir também reduzir para metade o risco de futuras pandemias causadas por vírus que possam passar de animais para seres humanos.
Foi isso que esteve na origem da atual pandemia e “a comunidade científica já vem alertando há muito tempo que uma situação como a covid-19 estava para acontecer”, disse Mariana Vale, que participou no estudo.
Com a covid-19, “havia uma oportunidade de chamar a atenção para o problema da prevenção, porque a tendência é para aumentar a frequência dessas pandemias”, sublinhou a professora de ecologia na UFRJ.
“Era preciso colocar um valor monetário na prevenção, para que na verdade os tomadores de decisão começassem a ter elementos para decidir o que é melhor: prevenir ou lidar com as pandemias”, explicou Mariana Vale.
O estudo defende o investimento em programas para pôr um fim ao tráfico de internacional comércio de animais selvagens e ao consumo de carne desses animais, algo ainda comum na China, disse a acadêmica Márcia Castro.
A especialista em demografia na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, disse que a prevenção passa também pela vigilância de doenças em animais domésticos e selvagens e pela redução, pelo menos para metade, da desflorestação de florestas tropicais, incluindo a Amazônia.
Márcia Castro admitiu que é um enorme desafio convencer as autoridades e sociedades a investir milhares de milhões de euros na prevenção de pandemias, devido ao “paradoxo do sucesso”.
“Se fizermos a coisa certa no campo da saúde pública, o sucesso da prevenção é invisível, não tem dramas, não tem vidas perdidas, nada acontece”, sublinhou a investigadora.
Mariana Vale disse que “existe um foco excessivo na preparação” para a próxima pandemia, seja através do reforço dos serviços de saúde e da capacidade de produção de materiais como máscaras, seja através do desenvolvimento de vacinas.
“Essa tem sido a resposta à covid-19, ignorando completamente a possibilidade de as pandemias poderem ser prevenidas”, acrescentou a especialista em ecologia.
A covid-19 provocou quase seis milhões de mortos em todo o mundo desde o início da pandemia, segundo o mais recente balanço da agência France-Presse.