A comissão, que começou a recolher testemunhos em 11 de janeiro de 2022, revelou hoje ter recebido 564 testemunhos, dos quais 512 foram validados, os quais são relativos a pelo menos 4.815 vítimas.
Da Redação com Lusa
A Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica enviou para o Ministério Público 25 casos de entre os 512 testemunhos validados recebidos ao longo do ano, anunciou hoje o coordenador Pedro Strecht.
A comissão, que começou a recolher testemunhos em 11 de janeiro de 2022, revelou hoje ter recebido 564 testemunhos, dos quais 512 foram validados, os quais são relativos a pelo menos 4.815 vítimas.
Os casos de abusos sexuais revelados ao longo de 2022 abalaram a Igreja e a sociedade portuguesa, à imagem do que tinha ocorrido com iniciativas similares em outros países, com alegados casos de encobrimento pela hierarquia religiosa a motivarem pedidos de desculpa, num ano em que a Igreja se vê agora envolvida também em controvérsia, com a organização da Jornada Mundial da Juventude, em Lisboa.
Na apresentação do relatório final, que decorre na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, Pedro Strecht afirmou que “será difícil que, a partir de agora, tudo fique igual” em relação aos abusos sexuais cometidos contra crianças no seio da igreja, em Portugal.
Revelou que a comissão validou 512 testemunhos de 564 recebidos no total, um número que permite chegar a um número total de vítimas mais extenso e que é de 4.815 crianças, tendo Pedro Strecht mencionado que “não é possível quantificar o número total de crianças vítimas”, uma vez que o contato com a comissão era voluntário.
Referiu que a média de idade atual das vítimas é de 52 anos, “mais baixa do que noutras comissões” e que em 20% dos casos as pessoas têm hoje cerca de 40 anos.
Segundo Pedro Strecht, a maior parte das vítimas são do sexo masculino (52%), em 32% dos casos têm grau de literacia ao nível da licenciatura e, à época dos abusos, “eram todos estudantes do primeiro e segundo ciclo”.
“Há casos em todos os distritos”, revelou o responsável, especificando que Lisboa, Porto, Braga, Santarém e Leiria são os cinco distritos com mais casos, por ordem decrescente.
Segundo Pedro Strecht, a incidência nestes distritos explica-se, em parte, pela existência de seminários ou outras instituições religiosas.
“Nos testemunhos estão incluídos todos os crimes previstos na Lei Penal portuguesa”, referiu, sublinhando que predominam os abusos continuados.
Em quase metade do total dos casos (48%), as vítimas só revelaram pela primeira vez os abusos de que sofreram quando contactaram a comissão pela primeira vez.
“Tenho 71 anos, mas nunca esqueci ou esquecerei”, disse uma das vítimas, citada por Pedro Strecht.
O coordenador referiu que a maior parte das vítimas acabou por afastar-se da igreja, entendendo que “não há reparação possível”, mas que espera que a igreja e os abusadores peçam desculpa publicamente.
Pedro Strecht referiu ainda que no final do relatório há uma série de recomendações para a igreja, mas também para a sociedade em geral “para que nada fique igual”.
Prescreveu
A maioria dos 25 casos que a Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica enviou para o Ministério Público já prescreveu, segundo o antigo ministro da Justiça Álvaro Laborinho Lúcio.
“A maioria [dos casos] já prescreveu”, salientou depois Laborinho Lúcio, durante a apresentação do relatório. O ex-ministro acrescentou que a Comissão Independente não podia “ficar com estes de dados na mão e não enviar ao Ministério Público”.
De acordo com Laborinho Lúcio, a Comissão Independente não tem de fazer juízos e não tem competência no domínio. “Nós enviamos para o Ministério Público este tipo de casos. A [nossa] investigação parece relativamente simples, na linha tradicional de uma investigação criminal”, realçou.
As décadas de 1960, 70 e 80 do século XX foram as que registraram um maior número de casos de abuso sexual no seio da Igreja em Portugal.
Segundo a socióloga e investigadora Ana Nunes de Almeida, a idade média das vítimas é hoje de 52,4 anos, 52,7% são homens, 47,2% são mulheres e 88,5% são residentes em Portugal continental.
Dos abusados, 53% continuam a afirmar-se católicos e 25,8% são católicos praticantes.
Quanto ao tipo de abusos, os homens sofreram principalmente “sexo anal, manipulação de órgãos sexuais e masturbação”, enquanto as mulheres sofreram, na maior parte dos casos, de “insinuação”.
Ainda segundo os dados apresentados por Ana Nunes de Almeida, os locais onde a maior parte dos abusos ocorreu foi nos seminários (23%), na igreja, em diversos locais, inclusive no altar (18,8%), no confessionário (14,3%), na casa paroquial (12,9%) e em escolas católicas (6,9%).
Os abusados que deram os seus testemunhos, na altura dos abusos residiam com os pais (58,6%), 1/5 estavam institucionalizados, enquanto 7,8% pertenciam a famílias monoparentais.
Por outro lado, 57,2% foram abusados mais do que uma vez, e 27,5% referiram que o caso dos abusos de que foram vítimas durante mais de um ano.
No caso dos rapazes, um padre foi o abusador em 77% dos casos.
Silêncio
A Comissão reconheceu ainda que “habitualmente, são as vítimas [de abuso] a iniciar o silenciamento, por sentimentos de medo, vergonha e culpa”. Segundo o pedopsiquiatra Strecht, é “uma expressiva minoria” o número das vítimas que revelam os abusos.
Acrescenta que, quando o fazem, as vítimas “concretizam-no junto de pessoas próximas”, dependendo da atitude destas “a evolução futura da situação”.
Por outro lado, em fases posteriores da vida adulta, “é necessário suporte psicológico e/ou psiquiátrico para intervir em diversos quadros clínicos, como as perturbações de ansiedade e do humor depressivo ligadas a situações de stress pós-traumático”, acrescenta a comissão.
Ainda neste documento, o grupo de trabalho aponta que “o perfil dos abusadores é variado”, predominando “adultos jovens com estruturas psicopatológicas, agravadas por fatores de risco como o alcoolismo ou o mau controlo de impulsos”.
Segundo o sumário do relatório, “no caso de abusadores em contexto religioso, o acompanhamento espiritual, embora muito importante, não é suficiente. É necessária uma intervenção psiquiátrica e psicológica intensiva e duradoura”.
O documento revela, também, que “os dados apurados nos arquivos eclesiásticos relativamente à incidência dos abusos sexuais devem ser entendidos como a ‘ponta do iceberg’”.
“Ficou cabalmente demonstrado que um número indeterminado de vítimas não reportou os abusos à Igreja Católica; muitas das queixas terão sido tratadas informalmente, não deixando qualquer rasto documental; com algum grau de probabilidade, a eventual prática de expurgos dos arquivos sem respeitar as normas impostas pela legislação canónica terá sido praticada (convicção partilhada com muitos clérigos contactados)”, pode ler-se no sumário do relatório.
Conferência Episcopal Portuguesa
Neste dia 13, o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) declarou que o relatório da Comissão Independente para o Estudo “exprime uma dura e trágica realidade: houve, e há, vítimas de abuso sexual provocadas por clérigos”.
“Pedimos perdão a todas as vítimas: às que deram corajosamente o seu testemunho, calado durante tantos anos, e às que ainda convivem com a sua dor no íntimo do coração, sem a partilharem com ninguém”, acrescentou.
Em conferência de imprensa em Lisboa, José Ornelas disse que a situação “é uma ferida aberta que (…) dói e (…) envergonha”.
Poucas horas depois da apresentação do relatório, afirmou que os dados “exprime uma dura e trágica realidade: houve, e há, vítimas de abuso sexual provocadas por clérigos e outros agentes pastorais, no âmbito da vida e das atividades da Igreja em Portugal”.