Um livro que escrevemos é algo parecido com o nascimento de um filho. Um trabalho que, aliás, muitas vezes, é bem mais longo que os nove meses de gestação. Mas, de todo modo, depois que ambos vêm à luz, coincidem na preocupação para que sigam seus caminhos da melhor forma possível. Para que não se percam e sejam respeitados. O livro e o filho têm, assim, para seu criador, uma relação com a fé na vida, a crença em um futuro que pode ser melhor que o presente. Afinal, em sã consciência, alguém legaria seu rebento a um mundo que julgue ser pior do que aquele que ele próprio vive? Penso eu que não. É, pois, um ato de crer em uma positiva transformação. Aliás, desde pequeno, ouço falar que uma pessoa precisa fazer três coisas para deixar positivamente sua marca no mundo: ter um filho, escrever um livro e plantar uma árvore. Certamente, os três fatos só darão certo se tiverem sido feitos com carinho, com atenção e trabalho. Muito trabalho.
O livro “Chorando na Garoa – Memórias Musicais de São Paulo” é uma iniciativa pessoal. Foi pensado exatamente porque acredito que o mundo contemporâneo vem, num crescendo, tratando-se do campo da música popular, sofrendo um violento processo de ‘pasteurização’, tendo em vista o poder da chamada Indústria Cultural. Cada vez mais se ditam modas, com originalidade discutível, pouca verdade e uma qualidade ruim sendo difundida. Assim, dentro de minhas possibilidades particulares, procuro contribuir com esta obra. Busco fazer parte de uma intenção, digamos, ‘ecológica’, na esfera da cultura. Em outras palavras, ajudar aliando-me a outros esforços semelhantes na proposta de não deixar perder referências daquilo que temos como base de uma ‘alma brasileira’. Levantar bandeira de sustentabilidade cultural, mas sem xenofobia.
O mercado de música no Brasil é bem apreciável, com um imenso público consumidor, afirmam os empresários. Não é para menos. O brasileiro é musical por natureza. Andando pelas ruas podemos ver inúmeras pessoas conectadas em telefones celulares e eletrônicos afins ouvindo suas preferências. No trânsito, os aparelhos sonoros ligados espalham música por vários metros ao redor do motorista. Canta-se, assobia-se intensamente por onde observamos. No trabalho e em casa. Somos conhecidos no mundo por, pelo menos, dois produtos vinculados a nossa musicalidade: o samba e o carnaval. E, cada vez, milhares de pessoas vêm descobrindo o frevo pernambucano, atraindo turistas no reinado de Momo. Contudo, o Brasil é muito mais que samba, frevo e carnaval. Vai bem além. Este país continente é de uma intensa riqueza musical, que se reflete na dança e todas as coisas que acabam envolvendo estas manifestações. E o problema está exatamente nisto: precisamos nos descobrir, para que evitemos perder nossas demonstrações mais autênticas. O brasileiro ainda desconhece o Brasil. E se você não toma consciência, não cuida. E, para acabar, é só deixar o tempo apagar. Uma sugestão que fica é procurar a coleção da Discos Marcus Pereira, de saudosa memória, ou as coleções da FUNARTE.
A IFPI – Federação Internacional da Indústria Fonográfica diz que o país é o oitavo mercado mundial no setor. Em 2012, a receita total de vendas de música foi de R$ 504 milhões, isto é, 8,9% maior que no ano anterior. Cresceram 81% as vendas digitais entre um ano e o outro. A venda física caiu 10%. O total de vendas digitais é 27%. E não deve mais parar de subir. É, de fato, um fenômeno global. Nos EUA, maior mercado mundial, a estrutura dessa rede digital que vai cada vez mais se espalhando já gerou mais de 200 mil empregos. Internet e tecnologia movimentam milhões. São fontes de lucro absolutas, ganhando dinheiro com música. E, portanto, incansável nas motivações. Em poucas horas o sul-coreano Psy teve 142 milhões de visualizações de seu mais recente lançamento pop. É a Ásia se apresentando ao mercado, querendo dar sua mordida. Tudo interconectado: rádio, vídeo, TV a cabo, jornais eletrônicos etc. Uma avalanche para se consumir num apertar de botão. Aliás, a ‘rede’ tem brasileiros ‘bombando’ nos downloads: estrelas Michel Teló e Gustavo Lima, o primeiro com “Ai Se Eu Te Pego” e o último com o refrão-chiclet tche-tchererê-tche-tchê, duas referências da atual ‘música sertaneja’ que tem, como ingrediente, grande tempero country. Abraçam altos percentuais da juventude aqui dentro e também lá fora, porque repercutem no exterior. Claro, sem contar o rock, a dance, o funk, o reggae e etc. que passeiam em terreno fértil neste país receptivo. A ‘mão de obra’ é brasileira, mas as idéias são alienígenas. Então, por que não valorizarmos mais o que é nosso?
Dias atrás o pernambucano Alceu Valença, cujo currículo traz diversos embates contra os desejos das empresas de discos que tentaram interferir no seu trabalho, realizava interessante reflexão: – os cantores brasileiros estão adotando uma embocadura típica do soul, que não tem nada a ver com o canto brasileiro. Valença traz consigo a tradição nordestina dos maracatus, das emboladas, do xote, de Luis Gonzaga e Jackson do Pandeiro. Não abre mão das referências. E prossegue: – A fuleiragem musical está acabando com a música brasileira. Eu contribuo, sobretudo, através da integridade, da atitude de jamais fazer concessões para o sucesso fácil, para as jogadas meramente comerciais. Esse barulho, além de ‘deseducar os ouvidos’, como fala o maestro Julio Medaglia, também acaba desviando a atenção de outros aspectos honestamente muito ricos, que ficam obscurecidos.
Thobias da Vai-Vai, importante intérprete da alvinegra escola de samba do Bexiga, dizia que se perguntarmos hoje para a rapaziada se conhece o que é um chorão, a resposta vai ser que é um cara que vive abrindo o berreiro ou, então, um tipo de planta, uma árvore. Ele, que passa seus dias no meio artístico musical do samba, acha que o choro está muito oculto. E não é só a sua opinião. Na média, os músicos de choro não são reconhecidos pela população em geral. Não têm vida fácil. Como professor universitário em ciências sociais eu próprio sinto isto. Por algum acaso, citando nomes e tirando alguns exemplos mais evidentes como Chiquinha Gonzaga, que recebeu uma minissérie televisiva em 1999 e Pixinguinha, autor de “Carinhoso”, teremos dificuldades em encontrar pessoas que tenham clareza de quem foram, por exemplo, Villa-Lobos, Ernesto Nazareth, Zequinha de Abreu, Luis Americano, Garoto, Jacob do Bandolim, Waldir Azevedo ou mesmo Raphael Rabello. Muito menos saberão quem foi Callado, Anacleto ou Radamés. E isto em se tratando do choro, aquele que é o mais antigo gênero de musica urbana do Brasil. Em outras palavras, é a raiz do que temos conhecido como MPB – Música Popular Brasileira. Vide Ary Vasconcellos, José Ramos Tinhorão, Abel Cardoso Jr, alguns entre os pesquisadores sérios. É apenas um exemplo dos gêneros brasileiros que floresceram de norte a sul, envolvendo as cidades e o meio rural. Quanto a se promover.
Precisamos, portanto, resgatar o ‘Brasil brasileiro’. Não o Brasil do mercado consumista/ massificado/ transnacional, sim aquele que tem a ver conosco. O choro é simplesmente, repito, um caso objetivo desta necessidade. Sobrevive em pequenos grupos de apreciadores quando, na realidade, deveria ser expandido, divulgado, promovido. E isto passa por uma questão mais ampla, a da importância da melhora educacional, da qualidade de visão crítica. Só poderemos ser participantes ativos e conscientes de uma relação cada vez mais globalizada e de alta sofisticação tecnológica que se impõe inexoravelmente se estivermos educados, com formação humanística adequada para podermos ser seletivos, não ingênuos e ignorantes. Mário de Andrade na primeira metade do século XX já tinha esta preocupação de identidade, num tempo em que telefone, rádio e fonógrafo eram objetos para muito poucos. Sermos autônomos para dialogar, não para a subserviência. Precisamos aprender a dizer não para as imposições e seduções em ‘ser moderno’ de forma irrefletida, sem ponderação, em uma perigosa época marcada pela liquidez, pelo descartável, pelo imediatismo, como vivemos.
Chamar o povo para as rodas. Incentivar os Clubes do Choro e as escolas como a Portátil do Rio de Janeiro e a “Luizinho 7 Cordas”, de Santos. Levar o choro à Universidade, como fizeram os ingleses em consideração à obra dos Beatles ou os norte-americanos com o Jazz. Incentivá-lo como matéria curricular nas escolas de música. Ensinar e multiplicar adeptos é a saída. O choro precisa de ouvintes, mas, acima de tudo praticantes, de estudiosos que o mantenham renovado e sendo levado adiante de forma criteriosa, travando contato com o mundo, suas influências, todavia, sem perder o seu caráter verde-amarelo.
“Chorando na Garoa – Memórias Musicais de São Paulo”, saindo da maternidade editorial agora, é um pouco disto tudo. Choro, seresta e Cia. Uma carta de gratidão a tantos expoentes que se dedicaram ao gênero – no país e, em especial, entre os paulistas – e um incentivo a novos fãs. Espero que cumpra seu objetivo de resgatar ideais, de promover debates e incentivar propostas futuras, passando por uma leitura agradável, como é a experiência em tocar e ouvir este genuíno gênero nacional que merece maior respeito e atenção. São Paulo, 13 de maio de 2013, dia da Lei Áurea.
Prof. José de Almeida Amaral Júnior
Professor universitário em Ciências Sociais; Economista, pós-graduado em Sociologia e mestre em Políticas de Educação; Colunista do Jornal Mundo Lusíada On Line, do Jornal Cantareira e da Rádio 9 de Julho AM 1600 Khz de São Paulo.