Charles não leva a vida na flauta

Quando a cantora soul londrina Amy Winehouse há pouco morreu aos 27 anos houve uma comoção generalizada. Toda a mídia repercutiu o fato e uma multidão correu para frente de sua residência, assim como para as gôndolas das lojas de música a fim de adquirirem os seus dois únicos trabalhos. Dona de uma voz com um timbre bastante especial Amy Winehouse foi, então, guindada à condição de ‘diva’ e ‘maior estrela da música pop’ no século XXI. Sua passagem jogou seus discos para o topo na parada de sucessos britânica, provocando reedições e o estímulo para que se ‘raspasse o tacho’ de gravações não utilizadas ou ainda em elaboração a fim de se construir um álbum póstumo. O Daily Mirror falou em material para 3 discos. Coisa para total delírio e deleite dos fãs. E, claro, da própria indústria fonográfica, sempre cheia de boas intenções.
Amy Winehouse, filha de um casal classe média cujo pai taxista gostava de jazz, foi outra vítima do sistema que envolve o show business. Mais do que o seu punhado de Grammys pelo segundo disco, “Black to Black” (2006), inegavelmente uma grande obra do pop contemporâneo, a moça foi extraordinariamente divulgada e conhecida pelas suas tristes imagens patéticas, fora de si, bêbada, drogada, em processo de emagrecimento, exploradas até a última gota pela imprensa, pela máquina da indústria de diversão, sem reflexão cabível, num total oba-oba.
Chega, então, o desenlace óbvio, e consigo as hipócritas conclusões: ‘mais uma que vai tão cedo…’ Amplia dessa maneira o fúnebre time dos 27 junto a Jim Morrison, Janis Joplin, Jimi Hendrix, Brian Jones, Kurt Cobain entre outros que partiram tão jovens. Todos inspirados e amados músicos que, após a frenética vida de popstars, acabaram vencidos por esse liquidificador psicológico, sendo como que sacrificados ao sistema-divindade completamente insano que foram introduzidos. Frágeis e entregues, morrem sozinhos.
Coincidentemente, dias atrás, o jornal Folha de São Paulo publicou um artigo mostrando a situação precária vivida por um outro músico, este brasileiro e de qualidade formidável, Charles Pereira Gonçalves, o Charles da Flauta. Confesso que há cerca de dois para três meses já estava tendo noticias dele através de conhecidos em comum, gente de grande coração da Escola Municipal de Música, que o avistaram e o contataram no Centro Velho, sobrevivendo debaixo de um viaduto em total mendicância.
Charles nasceu em uma família humilde, mas ela tinha algo de especial. Os meninos desenvolveram grande talento musical que logo foi explorado pelo pai, na intenção de diminuir as dificuldades da vida. Ele e o irmão, ambos pequenos ainda, sob as vistas do pai, iam para a cidade tocar nas calçadas, para capturar os ouvintes, os transeuntes que sempre passam apressados em seu quotidiano. Mas, com os meninos, com o som produzido por eles, algo de diferente ocorria em meio à selva de pedra paulistana, aos seus ruídos incessantes e, assim, eram obrigados a parar para ver e ouvir. Aplaudir e, claro, dar uma colaboração, um cachezinho, pelo espetáculo bonito e em lugar tão inusitado. Charles é um virtuose. Um flautista excepcional cuja categoria foi reconhecida por talentos inquestionáveis como os mestres Altamiro Carrilho e Toninho Carrasqueira. A ele foram então dadas oportunidades. Aos 14 anos gravou um antológico LP de choro, em 1988, cujas opiniões chegaram ao ponto de dizer que o moleque era uma reencarnação de algum flauta de alto nível. E surgiram então as chances de estudar fora, com bolsa, na Europa. Grande oportunidade. Tudo, assim, parecia caminhar para um final feliz, como uma história de contos de fada ou de cinema. Porém, havia um obstáculo que se tornou intransponível para ele. E, desde o início dos anos 1990, seu rumo foi outro, muito diferente. E, cruel.
O senso comum acredita que a droga é algo que, quando o sujeito passa a consumi-la, ele a abandona quando quer. Assim, como se fosse um refrigerante ou um chiclet de bola. O sujeito diria: – “Chega!”, e pronto, estaria acabado. Ledo engano. Lamentavelmente a coisa não é assim. Isso é um profundo equivoco. Charles encontrou a maconha e uma rede de possibilidades que lhe facilitavam o acesso. Grande músico, muitos convites, tapinha nas costas, noitadas, más companhias, estrutura psicológica frágil e respaldo insuficiente. A coisa assim foi ganhando vulto até não poder mais. Hoje ele é consumidor de crack. Já foi preso, perdeu suas flautas transversas, ficou sem recursos e, todas as vezes que dispõe de algo, acaba sendo levado pelo ambiente que o cerca. A vida nas ruas é muito áspera e sem garantias de amanhã.
De acordo com a Faculdade de Medicina da USP a dependência química é uma síndrome caracterizada pela perda do controle do uso de determinados agentes psicoativos. Eles atuam sobre o sistema nervoso central, provocando reações e estimulando o consumo repetido dessa substância. Dependência química é uma das doenças psiquiátricas mais freqüentes da atualidade. E as pesquisas do Hospital das Clinicas mostram que está se ampliando o uso de crack em relação à cocaína. Ele atinge o sistema nervoso central de maneira mais rápida e intensa que a droga aspirada. Gera uma dependência grave e de difícil tratamento. Recaídas são freqüentes: 50% nos seis primeiros meses e 90% no primeiro ano. É, portanto, uma doença crônica. Não é uma opção do sujeito.
Psicoterapia e farmacoterapia são as duas abordagens para se lidar com o caso que deve contar com a ajuda e motivação ao redor do paciente, pois os dependentes que não contam com apoio intenso e seguro acabam por cair no desemprego e chegar às vias ilegais, ampliando a chance das mortes por overdose, homicídio ou suicídio. Dizem os especialistas da USP que mesmo após o tratamento e a abstinência da substância psicoativa, não se considera curado o paciente.
Charles dá claras indicações que deseja sair dessa situação em que se encontra e retomar o caminho anterior. Ele é educado, conversa bem, procura manter asseio na situação em que se encontra, chegando ao caso de lavar-se pelas imediações para poder encontrar com os seus conhecidos. Ao ganhar uma flauta soprano, discutia sobre as condições técnicas entre o modelo germânico e o barroco como facilidades para se tocar choro. Fabuloso. Um patrimônio da musica paulista. Charles é um grande artista que está à deriva e precisa, de novo, de auxilio sincero.
Amy Winehouse agora já encerrou a sua história nesta terra. Charles Pereira Gonçalves, que acaba de aniversariar neste 13 de agosto, não pretende ter outros paralelos com ela. Quer muito, como confessa aos mais próximos, voltar a trabalhar e a viver seus dias com dignidade, produzindo. Seu sopro, mesmo que com apenas um pulmão, ainda enche de encanto o espaço por onde se apresenta com sua flauta. A sociedade deve se esforçar para recuperar este talento e evitar o pior. É uma questão dura, porém, clara: não basta somente ele querer. É preciso que o entorno lhe estenda a mão e o salve também.
São Paulo, 16 de agosto de 2011

Prof. José de Almeida Amaral Júnior
Professor universitário em Ciências Sociais; Economista, pós-graduado em Sociologia e mestre em Políticas de Educação; Colunista do Jornal Mundo Lusíada On Line, do Jornal Cantareira e da Rádio 9 de Julho AM 1600 Khz de São Paulo.

5 comentários em “Charles não leva a vida na flauta”

  1. Tristíssima história de Charles da Flauta!
    No entanto, a esperança de poder superar a dependência da droga, o coloca em um estado superior. Tenho casos muito próximo de pessoas que se perderam e outras que superaram. É possível. Mas o estrago feito é irrecuperável…

  2. Caríssimo Mestre Amaral,
    Como sempre nos encanta e, ao mesmo tempo, apresenta a realidade em seus textos, que para muitos passa batida no dia-a-dia. Adoro lê-los.
    Durante 1 ano, exatamente em 2008, fiz um trabalho de campo num albergue de moradores de rua, aqui na cidade de São Paulo. Uma vida que não é fácil e foi construída aos poucos, por muitos deles, quando começaram a fazer o uso das drogas.
    Não é somente a droga que leva uma pessoa a viver nessas condições, mas ela é o maior fator para isso e qualquer pessoa que entra para esse mundo está sujeita a essa condição de vida. Cito o caso de Rafael Ilha, ex integrante do grupo polegar, preso algumas vezes por tentativa de sequestro, roubo e posse de drogas.
    Esse é um tema sério e deve ser discutido com muita responsabilidade entre a sociedade civil, a especializada (médicos) e o governo para criar políticas públicas necessárias e eficientes que vão desde o combate às drogas até clínicas de recuperação.
    Espero estar viva para presenciar ou fazer parte, de alguma forma, das ações dessas políticas.
    Um grande abraço, muito saudoso de sua ex aluna,
    Andrea

  3. Grande Professor,
    Lindo artigo, lamentavelmente, alguns artistas mergulham em um mundo, que contrasta em muito com a beleza singular e inspiradora de suas carreiras, e para eles a vida não imita sua própria arte.
    Paulo De Jesus
    1 grande abraço.

  4. À terra que ainda não pisei BRASIL, mas quem sabe !!!!! 1 dia.
    A todo Brasil meu abraço deste amante da musica que sou, e pela defesa e qualidade de vida humana, se assim posso apelidar.
    Como ele e todos nós, dotados de capacidades, muitas vezes sem sabermos, sermos detentores de tais proezas, falo por mim, e reconheço que o caminho é sempre longo e pela via mais distante do objetivo final.
    aqui deixo minha opinião, que desde cedo todos em grupo social façamos aquilo que sempre pensamos fazer, mas que não abrimos mão de falar o que nos vai na alma, aí sim dará frutos, com certeza.
    Não desistirmos de nós é o maior desafio.

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