Catalunha: Da Autonomia À Independência – Um Sonho Secular

Por Carlos Fino

A aspiração da Catalunha à independência não é um processo de agora – atravessa os séculos. Esse sonho já esteve à beira de se concretizar por diversas vezes e outras tantas acabou por não se consolidar. Mas não morreu. E, dentro ou fora do Estado espanhol, a Catalunha nunca deixará de lutar pelo reconhecimento da sua especificidade e dos seus direitos ancestrais. Para melhor se compreender a profundidade desse sentimento e quais as suas raízes históricas, vale a pena percorrer, ainda que em traços gerais e muito resumidamente, esse percurso que ao longo dos séculos vai da autonomia ao desejo de independência.

878 – OS ÁRABES OCUPAM A CATALUNHA

Conquistada pelos árabes no século VIII, tal como grande parte da península ibérica, a Catalunha é reconquistada por Carlos Magno no ano de 801. Em 878, quando o imperio carolíngio se desfaz, o território catalão é unificado sob a designação de Condado da Catalunha, dependente do império franco.

987 – AL MANSOUR RETOMA BARCELONA

O emir árabe Al-Mansour retoma Barcelona. O conde catalão Borell II pede ajuda à França, mas não obtém apoio, tendo que contar apenas com as suas próprias forças para se opôr ao invasor. Consequência – o laço de dependência com a França desfaz-se, tornando-se a Catalunha praticamente independente. A partir do século XI, passa a designar-se Principado da Catalunha, título que mantém até hoje.

1162 – UNIÃO COM ARAGÃO

O conde de Barcelona Afonso, o Casto, unifica os condados catalães com o reino de Aragão, que herda da mãe. Barcelona torna-se centro de um poderoso reino que vai reconquistar Valência e as Baleares aos árabes. No século XIV, os exércitos catalães são considerados dos mais poderosos da Europa. Aragão-Catalunha estendem a sua influência à Sardenha, Sicília, sul da Itália e Grécia.

1283 – AS CONSTITUIÇÕES CATALÃS

No reino da Aragão, o Principado da Catalunha conserva as suas próprias leis e tradições, que o Rei se obriga a respeitar. Nesse ano, o parlamento de Barcelona, as Corts, promulga uma série de leis que o soberano ratifica. Esses documentos passam a consubstanciar a essência das liberdades e da própria identidade catalã.

1472- UNIÃO COM CASTELA

O rei de Aragão, Fernando o Católico, casa com Isabel, rainha de Castela – uma união dinástica que fica a assinalar o nascimento da Espanha. Mas cada reino conserva as suas próprias leis e os seus direitos, assegurando-se a manutenção das liberdades catalãs. Pouco a pouco, Castela ganha peso como novo centro de poder e a Catalunha entra num período de relativa decadência. A fusão da Espanha com o império Habsburgo reforça ainda mais o poder de Castela, relegando a Catalunha para segundo plano.

1640 – PRIMEIRA INDEPENDÊNCIA

A política centralista de Madrid começa entretanto, no século XVII, a gerar resistência. Quando, em 1640, os exércitos espanhóis ocupam Barcelona para atacar a França, regista-se uma revolta camponesa na Catalunha. A insurreição alastra e o presidente do governo catalão, a Generalitat, nomeado pelas Corts, declara a independência. Para enfrentar os espanhóis, a Catalunha pede ajuda à França. Luís XIII é proclamado conde de Barcelona e os espanhóis são batidos em Montjuic, nos arredores da capital catalã. A Catalunha mantém-se francesa até 1652 e quando do Tratado dos Pirinéus, em 1659, o seu território é dividido em dois – ficando a parte a norte daquela cadeia montanhosa a pertencer à França.

1714 – ESPANHA CONQUISTA BARCELONA

Quando da Guerra da Sucessão de Espanha, entre Bourbons e Habsburgos, a Catalunha fica ao lado da dinastia austríaca, considerando que era aquela que mais garantias lhe dava de manter as suas liberdades e autonomia. Mas a Áustria acaba por assinar uma paz separada e a Espanha invade e ocupa Barcelona, suprimindo as liberdades catalãs.

1907 – AUTONOMISTAS CATALÃES VENCEM ELEIÇÕES

Após o fracasso da primeira República (1873/1874) – mais um episódio de um agitado século XIX espanhol, marcado por guerras civis e golpes de Estado – o nacionalismo catalão reemerge em força. Uma revista satírica de Barcelona publica matérias críticas sobre os militares espanhóis e Madrid reage promulgando leis repressivas “em defesa das Forças Armadas e da Pátria”. Em resposta, os nacionalistas formam a Solidaritat Catalana, que vence as eleições locais de 1907. Após anos de lutas, em 1914, Madrid acaba por aceitar a criação de um governo catalão próprio; mas esta conquista é anulada em 1923, qando em Espanha se instala a ditadura de Primo de Rivera.

1931/1934 – DUAS PROCLAMAÇÕES DA REPÚBLICA

Em 1931, os republicanos vencem as eleições municipais em Espanha, o que leva à fuga do rei Afonso III. Em Barcelona, o líder da Esquerda Republicana da Catalunha/ ERC, Francesc Macia vence as eleições no Principado e no dia 14 de Abril proclama “a república catalã numa federação ibérica”. O governo espanhol aceita negociar e reconhece à Catalunha uma larga autonomia: a Generalitat renasce e Macia torna-se o seu primeiro presidente da nova era.

Em 1934, porém, os conservadores estão de novo no poder em Madrid; Lluis Companys, sucessor de Macia à frente da Generalit de Barcelona, volta a proclamar “a república numa federação ibérica.” Mas, desta vez, Madrid envia as tropas – fecha a Generalitat e suspende o Estatuto do Prinicipado. Em 1936, com a vitória da Frente Popular nas eleições, nova reviravolta – a autonomia catalã é de novo reconhecida e Barcelona torna-se uma importante frente de batalha da república contra os exércitos de Franco. Mas, em 1939, Franco conquista Barcelona – Lluis Companys foge para França, é detido pelos alemães e entregue a Franco, sendo fuzilado em Outubro de 1940.

1977 – “JA SOC AQUÍ”

Durante a longa ditadura de Franco, o nacionalismo catalão foi esmagado e o uso da língua nacional proibido. Só em 1975, com a morte do ditador e a abertura do período de transição, a questão catalã reemerge. Josep Taradellas, líder catalão no exílio, regressa ao país. Da varanda do palácio da Generalitat, em Outubro de 1977, proclama – “Ja soc aquí!” – Regressei, ou Estamos de volta! Os nacionalistas catalães participam na redação da nova constituição espanhola. Liderada pela ala mais moderada dos nacionalistas, a Catalunha estabelece um pacto com Madrid – aceita permanecer na Espanha, em troca de uma larga autonomia e do reconhecimento da sua cultura

1980 – 2017

DA AUTONOMIA AO INDEPENDENTISMO

Entre 1980 e 2010, a corrente nacionalista mais radical – defendendida pela Esquerda Republicana Catalã – manteve-se marginal, não ultrapassando os 15% dos votos.

Mas, em 2006, com o projeto de Novo Estatuto para o território, que consagra maior autonomia fiscal , tudo muda.

Aprovado pelo parlamento espanhol e referendado pelos catalães (73% a favor com 48% de participação), o Estatuto é, no entanto, contestado pelos conservadores, que levam o caso ao Tribunal Constitucional, argumentando que estava em causa a integridade do país.

Em 28 de Junho de 2010, o TC anula 14 artigos do novo Estatuto, incluindo aquele em que se reconhecia a Catalunha como nação e outro em que se consagrava a primazia do catalão no território. Os poderes da Generalitat ficaram também bastante mais reduzidos em termos fiscais e judiciários

A reacção não se fez esperar – gerou-se o sentimento de que não seria mais possível evoluir com base no pacto assinado em 1978. Surgem novas organizações nacionalistas que passam a convocar grandes manifestações de massa pela independência.

As políticas austeritárias dos últimos anos agravaram tudo, levando muitos catalães a quererem sair de um Estado que só vem agravando as prestações sociais.

Em 2015, os nacionalistas de direita e esquerda obtêm a maioria dos lugares e, inspirados pelo exemplo do referendo na Escócia, convocam o seu próprio referendo, que no passado dia 1 de Outubro o Estado espanhol praticamente inviabilizou.

E AGORA?

Agora, o parlamento catalão terá de decidir se se submete às decisões do Tribunal Constitucional, que considera o referendo pela independência ilegal, ou se desafia a ordem espanhola.

O risco de confronto é enorme, com consequências certamente muito negativas para a Catalunha e para a Espanha. Espera-se por isso que os dois lados saibam ainda evitar o pior e aceitem voltar ao diálogo.

Fonte: La Tribune/Grand Angle

 

Por Carlos Fino
Jornalista português, nascido em Lisboa, em 1948. Correspondente da RTP – televisão pública portuguesa – em Moscou, Bruxelas e Washington, destacou-se como correspondente de guerra, em conflitos armados na ex-URSS, Afeganistão, Oriente Médio e Iraque. O primeiro repórter a anunciar, com imagens ao vivo, o bombardeio de Bagdad pelas tropas norte-americanas na Guerra do Golfo (2003). Foi conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal em Brasília (2004/2012). Escreve semanalmente para o Jornal Mundo Lusíada.

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