Em cerimônia pública realizada dia 27 de novembro, a Universidade de Brasília (UnB) conferiu ao jornalista português Carlos Fino o título acadêmico de “Notório Saber em Comunicação”.
Estabelecido por lei, o “Notório Saber” qualifica, no Brasil, a pessoa cujo conhecimento e experiência numa área específica são reconhecidos por uma instituição de ensino superior como tendo mérito equivalente a um doutorado. Os critérios de reconhecimento são estabelecidos pelo Conselho Nacional de Educação e o título aceite oficialmente para todos os fins úteis.
No caso concreto de Carlos Fino, que cursou Direito em Lisboa e Bruxelas, o processo prolongou-se por quase três anos – ano e meio para constituição de um dossiê descrevendo em pormenor todo o percurso acadêmico e profissional do candidato – e outro ano e meio para as diferentes instâncias da UnB analisarem e apreciarem o mérito.
A candidatura de Carlos Fino foi apoiada por docentes universitários portugueses e brasileiros das faculdades de Comunicação da Universidade do Minho, Universidade da Beira Interior, Universidade Federal Fluminense (Rio de Janeiro) e da própria UnB. O jornalista contou também com a recomendação do escritor Miguel Sousa Tavares, de quem foi colega na Faculdade de Direito de Lisboa e, mais tarde, como jornalista, na RTP.
A cerimônia de entrega do título teve lugar no Auditório (Aula Magna) da Reitoria da UnB, presidida pelo reitor, Ivan Marques de Toledo Camargo, e que contou com a presença do embaixador de Portugal no Brasil, Francisco Ribeiro Telles.
Carlos Fino tornou-se conhecido como jornalista no Brasil durante a cobertura da última guerra do Iraque, em 2003. As suas transmissões para a RTP foram, na altura, difundidas em simultâneo pela TV Cultura, de São Paulo, que destacou o fato de a RTP ter sido a primeira estação do mundo a dar a notícia do início do conflito, superando grandes cadeias mundiais, como a CNN, BBC e Sky News. Na sequência, diversas outras estações de rádio e televisão do Brasil passaram a contatar diariamente com o repórter português para envio de informações de Bagdad, onde nesse período a imprensa brasileira não tinha correspondentes.
Depois da guerra, Carlos Fino foi convidado a deslocar-se ao Brasil, onde proferiu conferências e participou em debates em diversas faculdades de comunicação, designadamente em Natal, Fortaleza, São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília.
Entre 2004 e 2012, Carlos fino exerceu, a convite do governo português, o cargo de conselheiro de imprensa na Embaixada de Portugal no Brasil. Nessa qualidade, promoveu, em colaboração com a TV Cultura de São Paulo e a RTP, a série televisiva Lá e Cá, que tinha como finalidade traçar um panorama sobre a evolução e perspectivas das relações Portugal-Brasil.
(Com Portugal Digital).
Discurso proferido por Carlos Fino
DISCURSO DE ACEITAÇÃO DO NOTÓRIO SABER
Meus amigos
Desde que, naquele já longínquo 19 de Março de 2003, início da invasão americana do Iraque, a TV Cultura de São Paulo me transformou, da noite para o dia, no seu correspondente em Bagdad e talvez no primeiro repórter de guerra luso-brasileiro, o Brasil tem sido de uma imensa, infinita generosidade para comigo.
– Foi do Brasil que me chegou o primeiro reconhecimento pelo trabalho realizado enquanto repórter da RTP, a televisão pública portuguesa, destacando o facto de termos sido os primeiros a transmitir imagens do início da guerra;
– Foi do Brasil que me chegaram as primeiras vozes a perguntar, no tom doce do português daqui: “ Carlos, ah Carlos, você tá bem?”
– Foram os meios académicos do Brasil que primeiro e de forma mais intensa se interessaram pela reflexão que fiz sobre a experiência do Iraque…
– E, logo em 2004, Brasília abriu-me os braços, atribuindo-me a cidadania honorária…
– No Brasil conheci depois a mulher que me incutiu de novo esperança e sem cujo amor, ajuda, inteligência e persistência, eu não teria encetado o longo processo que haveria de conduzir ao reconhecimento de Notório Saber em Comunicação com que a UnB decidiu distinguir-me e nos reúne hoje aqui.
Para mim, este título, que aceito emocionado com profundo e sincero sentido de humildade, é uma enorme honra e a concretização de um sonho.
De uma forma de outra, às vezes quase sem dar por isso, como se fosse algo de natural, o Brasil sempre esteve presente ao longo de toda a minha vida.
Em 1958, tinha dez anos e já folheava, na sala de leitura da Sociedade Artística da minha terra, Fronteira, Alentejo, no interior de Portugal, a revista O Cruzeiro e, um pouco mais tarde, também a revista Manchete, as quais, não sei por que artes mágicas, lá chegavam nesse final dos anos 50, ainda em plena ditadura de Salazar.
Por elas comecei a conhecer o Brasil e o seu jornalismo, a sua política, a sua arquitectura, o seu futebol, o deslumbramento do seu Carnaval…
Ainda hoje conservo na memória as imagens a preto e branco do desbravamento do Planalto Central para construir a utopia da nova capital com que o país queria inaugurar a era da sua modernidade.
Lembro também da completa e difícil novidade que foi para mim a Bossa Nova, a qual me obrigou a refazer o ouvido e o gosto musical…
E, um pouco mais tarde, o deslumbramento com Chico Buarque, que haveria de se tornar para mim um exemplo narrativo a seguir nas minhas crónicas de jornalista – conjugando poder de observação, síntese descritiva e olhar poético.
Depois, vieram as telenovelas e com elas a redescoberta da nossa língua.
Juntamente com vocábulos novos, contributo negro e índio para o acervo da língua comum, voltámos a ouvir e a usar – através de sinhozinho Malta e viúva Porcina – termos e expressões que já havíamos esquecido pelo menos desde o século XVIII.
Entre polémicas e resistências puristas, de alguma forma, o Brasil devolvia-nos, enriquecida, a nossa própria língua!
Mas se o Brasil sempre esteve presente na minha vida, de uma forma difusa e natural, quase como o ar que se respira, nunca imaginei que pudesse um dia ter o privilégio de me cruzar com as suas gentes em geral tão cordiais e conviver diariamente com o génio inovador de Niemeyer (o arquitecto Óscar Ribeiro Soares) , com esse culto do traço purificado, a beleza airosa laboriosamente perseguida, esse sentido de grandeza tranquila, despojada e fraterna que é a mensagem implícita da sua obra.
E muito menos podia pensar que o Brasil me concederia o Notório Saber em Comunicação, ou seja, o reconhecimento de uma formação académica em jornalismo, que sempre pretendi mas que as circunstâncias da vida sempre impediram que concretizasse.
Primeiro, porque não havia faculdade de jornalismo no Portugal de Salazar, do qual tive que sair por razões políticas e depois porque a profissão já me impunha obrigações incompatíveis com o esforço académico continuado.
Cabe aqui um agradecimento particular aos professores Zélia Adghirni, Fernando Paulino, Sylvia Moretzsohn, Luis Martins da Silva e Jandyra Cunha, a par dos professores de Comunicação da Universidade do Minho Madalena Oliveira, Manuel Pinto e Moisés Martins, da Universidade da Beira Interior, António Fidalgo, bem como do escritor Miguel Sousa Tavares, de quem fui colega na universidade e na RTP , pelo apoio sustentado que deram à minha candidatura desde a primeira hora.
Posso agora aspirar, graças ao Vosso reconhecimento, à docência universitária, tentando partilhar com a Academia o saber de experiência feito que fui adquirindo ao longo de mais de trinta anos de profissão.
Docência que em mim está intimamente associada ao conceito de comunicar como dar a conhecer, fazer luz – encontrando-se, portanto, no prolongamento do jornalismo tal como sempre tentei exercitá-lo.
Realização de um sonho, este título cria, entretanto, para mim, uma imensa responsabilidade e abre uma dívida de gratidão para convosco que, devo confessá-lo, não estou em condições de pagar.
Responsabilidade para não defraudar expectativas e poder estar minimamente à altura do reconhecimento e dívida impagável porque não posso de forma alguma equiparar-me a nenhum dos grandes nomes da intelectualidade lusa que no último século passaram ao longo dos anos pelas universidades brasileiras, acabando por constituir aquilo que António Cãndido designou como a Missão Portuguesa.
Alguns integram o melhor que Portugal produziu, em termos intelectuais, no século XX: Agostinho da Silva, Casais Monteiro, Fidelino de Figueiredo, Jaime Cortesão, Sarmento Pimentel, Barradas de Carvalho, Rodrigues Lapa, Ruy Luís Gomes, Jorge de Sena, Eduardo Lourenço, Fernando Lemos, Sidónio Muralha, Miguel Urbano Rodrigues, Eudoro de Sousa, Castro Soromenho, Luís de Lima, Melo e Castro, entre outros.
Todos eles com obra de grande vulto no Brasil, em particular nos media e na Academia brasileiros que generosamente os acolheram quando foram empurrados para fora do país pela intolerância pátria.
Sabendo embora que nunca poderei chegar onde eles chegaram, são eles que me inspiram e é pelo seu exemplo que quero ser norteado.
Já vai longa esta charla que desafia a vossa paciência e ocorre-me o que deixou dito Machado de Assis no Dom Casmurro – nada de mais feio do que dar pernas longuíssimas a ideias brevíssimas!
Ainda assim, não posso terminar sem uma referência às relações Portugal-Brasil.
Peço por isso a indulgência de mais uns minutos de atenção.
Não para desfiar aqui o velho rosário da retórica dos países irmãos, ou da relação filial, que não faz sentido desde que Eduardo Lourenço, há já um quarto de século, colocou a nu o clima de estranhamento e incompreensão mútua que atravessa o nosso relacionamento, desafiando-nos a encará-lo de frente para melhor nos entendermos.
Gostaria apenas e tão só de lembrar que uma das descobertas que fiz no processo do meu descobrimento pessoal do Brasil foi o escasso conhecimento que Portugal tem não só do Brasil contemporâneo, mas também e, talvez, sobretudo, da sua própria história no Brasil.
A razão, parece-me, reside no seguinte – Toda a gesta de Portugal no Brasil não está nos Lusíadas. O poeta ainda assinalou, é certo, que Portugal havia chegado “à quarta parte nova, onde as terras ara, e se mais mundo houvera, lá chegara”.
Mas mais não disse porque morreu em 1580, quando a gesta portuguesa na América ainda estava só no início. Não estando nos Lusíadas, essa epopeia não se firmou no imaginário nacional.
Não conhecendo nós, ou conhecendo mal e valorizando pouco, a nossa própria história no Brasil, como podemos queixar-nos da desatenção brasileira para com ela?
Como bem assinalou Eduardo Lourenço, não é culpa dos brasileiros serem “um povo demasiado grande para a memória que tem, tal como nós somos um povo pequeno de mais para a memória imensa que ao longo dos séculos refluiu para o nosso coração e nos sufoca”.
A comunidade portuguesa aqui alimenta, parece-me, uma infinda nostalgia pelo velho Brasil luso-brasileiro.
Mas a verdade que tem de ser encarada é que esse Brasil luso-brasileiro, como ensina António Cândido, “há muito deixou de existir como dimensão única, ante a profunda mistura racial e cultural devida às imigrações”.
O que deve ser valorizado de ambos os lados não é essa perda, mas a consciência viva de que, para além disso, como ensina o mestre, continua a existir um substrato poderoso formado pela língua e por influências originárias de todo o tipo que continuam a aproximar-nos apesar de todo o estranhamento.
Foi essa corrente que me trouxe de Portugal até ao Brasil, via Iraque.
Foi nas asas desse substrato, impulsionadas pela vossa generosidade, que cheguei hoje aqui.
É que a nossa língua comum, em múltiplos e diversos sentidos, está bem para além de Bagdad!
Assim saibamos estar à altura dos imensos desafios que essa realidade a todos nos coloca!
Muito Obrigado.
Bem Hajam!