Cante alentejano já não é só para velhos e até chega a novos palcos

O coordenador do Museu do Cante Alentejano, João Matias, posa para a fotografia no museu, em Serpa, 19 de novembro de 2024. Com a atribuição do ‘selo’ da UNESCO ao cante alentejano, há 10 anos, houve uma ‘explosão’ de grupos. Foto NUNO VEIGA/LUSA

Da redação com Lusa

Dez anos após o ‘selo’ da UNESCO, o cante alentejano continua a ‘alimentar’ a vida cultural de muitas povoações no Alentejo, mas já não é só para velhos e até chega a novos palcos.

Elementos de grupos corais da margem esquerda do rio Guadiana afiançam, apesar de faltarem registos históricos, que foi ali que o cante alentejano ‘nasceu’. E, em Serpa, distrito de Beja, um dos concelhos deste território, esta expressão cultural está bem enraizada.

Mas, ao contrário de outrora, já não se canta durante os trabalhos no campo, nem as mulheres em casa entoam modas de embalar para os filhos. Os homens é que, como antes, ainda se reúnem nas tabernas ou na rua para ‘soltar a voz’.

“Se formos correr aí rua acima, podemos ouvir cantar na rua, na taberna. O cante aqui em Serpa é muito apreciado”, conta à agência Lusa Miguel Lampreia, um dos membros mais novos do Grupo Coral e Etnográfico da Casa do Povo de Serpa.

Foi assim, a cantar com “malta mais nova”, aos fins de semana, nas tabernas, que Miguel, de 29 anos, começou a ligação ao cante alentejano e acabou por ingressar no grupo há cerca de quatro anos, juntamente com “três ou quatro amigos”.

Ainda que com menos regularidade do que noutros tempos, o ‘ritual’ nas tabernas também acontece em Vila Nova de São Bento, a cerca de 20 quilómetros da sede de concelho, atesta à Lusa Cristóvão Coelho, do Rancho de Cantadores da Aldeia Nova de São Bento.

“Se eu agora quiser começar uma moda, eles não me deixam ficar sozinho na moda e vão acompanhar-me”, prossegue António Silva, do mesmo grupo, enquanto convive com outros elementos da formação, entre copos e petiscos, no bar da sede do Clube Atlético Aldenovense.

Eduardo Mestre, de 22 anos, entrou para o Rancho de Cantadores da Aldeia Nova de São Bento há poucos meses, mas diz à Lusa que sempre cantou com os avós nas tabernas da aldeia vizinha de Vale de Vargo.

“Ainda acontece, na rotina diária no final do trabalho, a junção com os amigos, ao final da tarde. E um bocadinho de conversa puxa sempre um copinho e cante, que é nossa expressão do alívio do dia-a-dia e do ‘stress’”, relata.

António Silva é um dos responsáveis da comissão que gere os destinos deste grupo da Vila Nova de São Bento, fundado há 38 anos, constituído atualmente por 34 homens e que manteve o nome, mesmo que a povoação tenha sido elevada a vila em 1988.

As mudanças após a distinção da UNESCO, há 10 anos, foram “sem dúvida nenhuma para melhor” e um dos exemplos foi a “subida extraordinária da formação de grupos”, tanto de adultos, como de crianças, salienta.

Mas esse efeito da classificação como Património Cultural Imaterial da Humanidade, observa, durou pouco tempo e “os novos grupos praticamente desapareceram” ou originaram outros “mais pequenos ou instrumentais”.

“São as crianças da escola que nós, os grupos seniores, vamos buscar para cantarem connosco”, pelo que é necessário “mais dinamismo do cante jovem e juvenil”, sobretudo nas escolas. Caso contrário, “o futuro não é nada risonho”, defende.

Segundo António Silva, o ‘selo’ da UNESCO também deu mais importância e reconhecimento ao cante alentejano, com grupos a atuar por todo o país e até no estrangeiro e outros a subirem ao palco ou a gravarem discos com artistas profissionais.

“Antigamente, era muito raro um grupo de cante alentejano ir cantar ao norte ou mesmo ao Algarve”, diz.

Numa sala da Casa do Povo de Serpa, decorada com fotografias e quadros deste grupo coral fundado em 1928 e artefactos alentejanos pendurados na parede, alguns dos seus 26 integrantes preparam-se para um ensaio, sob a batuta do mestre Carlos Paraíba.

“Desde que o cante foi considerado Património da UNESCO, a procura é muito maior e os novos estão a aderir muito a isto”, vinca Carlos Paraíba, mostrando-se mais otimista em relação ao futuro desta expressão cultural.

Outrora, assegura, “havia até quem considerasse o cante alentejano, como diz aí a juventude, fatela, foleiro e piroso” e os colegas dos elementos mais novos “chegavam a troçar deles”, mas “hoje há procura e todos querem vir”.

A par da maior procura, de acordo com o mestre do Grupo Coral e Etnográfico da Casa do Povo de Serpa, a classificação permitiu ao cante alentejano subir a palcos julgados impensáveis.

“Hoje, somos solicitados pelo mais pequenino cantinho deste país. Já corríamos muito, mas agora ainda corremos mais e já fomos ao Brasil, Canadá, na Europa corremos quase tudo e até estivemos em África”, acrescenta.

Museu

A atribuição do ‘selo’ da UNESCO ao cante alentejano, há 10 anos, provocou uma ‘explosão’ de grupos corais e, mesmo que alguns não tenham resistido ao despovoamento e à pandemia de covid-19, o saldo é positivo.

A análise é feita à agência Lusa por João Matias, antropólogo e coordenador do Museu do Cante Alentejano, com base no inventário nacional realizado por este projeto da Câmara de Serpa, no distrito de Beja, e também em dados anteriores.

“O primeiro inventário sistemático foi feito em 2020 e, embora tivéssemos dados anteriores, percebemos, por exemplo, que o primeiro efeito da patrimonialização, do ponto de vista quantitativo, foi o aparecimento de muitos grupos corais e cantadores”, afirma.

João Matias estima que, em 2015, o ano a seguir à distinção como Património Cultural Imaterial da Humanidade, existiriam cerca de 150 grupos corais, realçando que o inventário nacional mostrou que, em fevereiro de 2020, antes do início da pandemia de covid-19, eram 189.

“Houve um grande entusiasmo, como é normal, e apareceram muitos grupos corais, sobretudo jovens”, mas, com a pandemia de covid-19, “praticamente todos” foram obrigados a parar, o que “fez com que alguns tivessem sofrido bastante com isto. Alguns até desapareceram e outros fundiram-se”, assinala.

O inventário, salienta o coordenador do Museu do Cante Alentejano, foi atualizado este ano e os dados mostram que os grupos “reagiram relativamente bem”, ainda que haja “menos grupos e menos cantadores” do que em 2020.

“Mas isso também tem a ver com outros aspetos, nomeadamente com o despovoamento desta região”, ressalva.

Este ano, segundo o responsável, o inventário nacional registou 164 grupos corais ativos, com 3.105 cantadores, cuja maioria, cerca de 60%, está no distrito de Beja, seguindo-se Évora e Lisboa.

“É curioso porque estão a aparecer grupos em Lisboa. Havia muito poucos e, agora, começam a aparecer mesmo no ‘coração’ de Lisboa, por exemplo, em Alcântara e Benfica”, destaca.

A maioria dos grupos corais é constituída apenas por homens, à frente dos que são formados só por mulheres e dos mistos, havendo ainda coletivos de crianças e jovens, muitos ligados às escolas.

O inventário é uma das tarefas do museu, mas, em Serpa, o espaço museológico possui um centro interpretativo, onde os visitantes podem conhecer, através da exposição permanente, a história do cante alentejano e até ouvir ou cantar modas.

Um auditório, uma galeria de exposições temporárias, um centro de documentação e loja são outras valências do espaço, que, este ano, de acordo com João Matias, “aproxima-se muito dos 5.000” visitantes.

O cante alentejano, canto coletivo sem instrumentos, tornou-se Património Cultural Imaterial da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) em 27 de novembro de 2014.

A distinção surgiu na sequência de uma candidatura apresentada pela Câmara de Serpa e pela Entidade Regional de Turismo do Alentejo e Ribatejo.

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