Por Carlos Fino
Numa sessão dramática, transmitida ao vivo para todo o país, como é norma no Brasil e caso único no mundo, o Supremo Tribunal Federal, que aqui tem também funções de Tribunal Constitucional, votou esta semana por reconhecer ao Parlamento o direito de aprovar ou não as sanções que o próprio STF decida aplicar aos deputados ou senadores.
Formalmente, a questão era genérica, tratando-se, na aparência, de aclarar princípios gerais do Direito e da Constituição sobre as normas que devem reger a separação de poderes. Na realidade, porém, como todos – dentro e fora do tribunal sabiam – tratava-se de ratificar ou infirmar as medidas de carácter punitivo já aplicadas pelo STF ao senador Aécio Neves, presidente do PSDB (Partido da Social-Democracia Brasileira) – incluindo uma controversa proibição de sair de casa à noite.
Aécio foi gravado numa conversa pouco republicana com o empresário Joesley Batista (o mesmo da gravação comprometedora com o presidente Temer), de quem teria recebido dois milhões de reais, em troca – segundo a denúncia – de favorecimento político, estando sob investigação da Procuradoria Geral da República, que chegou a pedir a sua detenção.
Negado uma vez por decisão “monocrática” de um dos onze membros do STF, o pedido da PGR teve melhor acolhimento junto de uma das “Turmas” (a primeira) em que o tribunal se divide, que embora não chegando ao ponto de decretar a prisão do senador, resolveu suspendê-lo das funções até que a ação seja julgada, impondo-lhe ao mesmo tempo a obrigação de recolhimento domiciliar noturno.
Em casos semelhantes anteriores, o Supremo decidiu sem maior controvérsia o afastamento do presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha – entretanto preso, julgado e condenado a 15 anos de prisão pelo juiz Sérgio Moro, em mais um processo de corrupção da Lava Jato – e do senador Delcídio do Amaral, que era líder do governo do PT na câmara alta do Parlamento.
Agora, porém, noutras circunstâncias políticas, as medidas restritivas impostas a Aécio suscitaram muitas questões e uma quase rebelião do Senado, que contestou vivamente o direito do Supremo interferir na sua esfera de competências exclusivas, ao coarctar o exercício do cargo a um dos seus. Daí, a dramática reunião da passada quarta-feira.
A disputa entre os juízes do Supremo, a que os brasileiros chamam ministros, foi altamente acalorada, expondo urbi et orbe a profunda divisão interna que, nalguns casos, já atingiu níveis de reconhecido ódio mortal: um dos juízes confessou à imprensa que, se estivéssemos no século XIX, a sua aversão por um dos colegas seria resolvida em duelo e ele “escolheria uma arma de fogo”…
No final da contenda, que muitos seguiram aqui pela televisão quase como se fosse um jogo de “mata-mata”, o colegiado dividiu-se ao meio – cinco a favor da manutenção das medidas restritivas a Aécio, cinco pela anulação. Coube à presidente do Supremo, Carmen Lúcia, o voto de Minerva para desempatar.
Visivelmente embaraçada, numa exposição confusa, oscilando nos argumentos pró e contra, a presidente acabou por decidir em favor de reconhecer ao Parlamento a última decisão sobre as medidas punitivas do STF.
Numa palavra, para evitar uma crise aberta entre os poderes da República, o Supremo inclinou-se, cedeu no braço de ferro com o Congresso e agora a expectativa é a de que, na próxima semana, numa reação corporativa, o Senado vote pela anulação das medidas do STF contra Aécio, reinstalando-o nas funções de senador.
Já de si grave pelas divisões entre os poderes que revela, à beira de uma crise de nervos, o caso assume ainda maiores proporções quando inserido no conjunto mais vasto de outras medidas que têm sido tomadas pela suprema corte, todas no sentido de favorecer, de uma ou de outra forma, figuras gradas da política ou dos meios empresariais apanhadas na rede de investigações da Lava Jato.
Para muitos, à direita e à esquerda, nada de mais normal – tratar-se-ia apenas de corrigir excessos dos procuradores e da polícia, inserindo-os nos devidos trâmites da lei, respeitando a divisão de poderes, os direitos dos cidadãos e os princípios mais sagrados do Estado de Direito, cuja violação é inadmissível, por mais justos que possam ser os fins proclamados pelos investigadores.
No entanto, os procuradores de Curitiba, que conduzem, há já três anos e meio, aquela que é a mais vasta operação de sempre contra a corrupção de toda a história do Brasil, não escondem a sua decepção.
Para eles e para todo os que ainda acreditam numa mudança de era no Brasil, com fim da impunidade dos poderosos, “botando fé” na promessa de regeneração do país trazida pela Lava Jato, o resultado final de 5-5 no Supremo, com o voto final que abre as portas à revisão das sanções decretadas pelo próprio tribunal, teve o efeito dos 7 a 1 sofridos pelo Brasil face à Alemanha no último campeonato do mundo de futebol. Afinal, tudo como dantes no quartel de Abrantes?
Por Carlos Fino
Jornalista português, nascido em Lisboa, em 1948. Correspondente da RTP – televisão pública portuguesa – em Moscou, Bruxelas e Washington, destacou-se como correspondente de guerra, em conflitos armados na ex-URSS, Afeganistão, Oriente Médio e Iraque. O primeiro repórter a anunciar, com imagens ao vivo, o bombardeio de Bagdad pelas tropas norte-americanas na Guerra do Golfo (2003). Foi conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal em Brasília (2004/2012). Escreve semanalmente para o Jornal Mundo Lusíada.
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