Por António Justo
Com a carta pastoral “Construir a Casa sobre a Rocha”, (1) o Arcebispo Primaz D. Jorge Ortiga deu o pontapé de saída na tentativa de dar resposta às novas maneiras de viver em sociedade, reconhecendo “a necessidade de uma nova articulação para transmitir a beleza da novidade cristã, por vezes coberta pela ferrugem de uma linguagem arcaica ou simplesmente incompreensível”.
Em 2017 houve 250 pedidos de nulidade matrimonial, apresentados nos 14 tribunais eclesiásticos portugueses. No futuro haverá muitíssimos mais. (2)
O Arcebispado coloca-se corajosamente ao lado do Papa Francisco apoiando o espírito da exortação Amoris Laetitia (A Alegria do Amor) confirmando que “somos chamados a formar as consciências, não a pretender substituí-las” (AL 37). Isto já provocou críticas de algum teólogo ultraconservador!
A Amoris Laetitia não desvaloriza o matrimónio, como alguns ultraconservadores pretendem, nem a Igreja tem de viver fora de contexto, nem está cá para complicar a vida…. Não se trata aqui de ceder ao relativismo, mas de dar resposta consciente a situações reais com pessoas reais e com problemas reais. A mediação em situações dramáticas, como as do divórcio, não pode ser satisfeita com uma mera referência canónica longe a realidade… O ótimo é inimigo do bom! Já não basta ao clero ficar-se comodamente pelo adro da Igreja, a pastoral está chamada a descer à rua. De facto, cada um de nós consta de si e das suas circunstâncias envolventes. Como não concebemos uma pessoa sem corpo e alma também não podemos fazer do Homem um corpo sem ossos!
A carta pastoral possibilita um excelente trabalho de preparação e um verdadeiro exame de consciência no fim do qual o fiel pode tomar uma decisão soberana.
O Anexo da Carta fala do tempo de discernimento necessário e, na “Proposta de elementos práticos para um processo de acompanhamento…”, revela-se à altura da exortação papal, concretizando: “Além de um verdadeiro discernimento, este tempo poderá certamente surgir como uma possibilidade de formação e investimento na vida espiritual pessoal e familiar”. Essa preparação ganha expressão, no dizer do arcebispo, com uma decisão individual soberana: “O Processo de discernimento termina com a confirmação da decisão tomada.”
Numa pastoral de preparação para o mundo de hoje, o cristão recasado ou divorciado que frequenta tal curso poderá ter a vantagem, em relação a muitos outros fiéis! Tem a oportunidade de entrar num processo de reflexão onde reconhecerá que muitos dos valores hoje apregoados como seculares não passam de uma tentativa da aplicação prática dos valores da filiação divina, fonte da dignidade de todo o humano com os consequentes valores da liberdade, irmandade, “igualdade” e democracia. Muitas pessoas adversas ao homo religiosus procuram apresentar estes valores como antagónicos à religião, como se a bondade ou a maldade fossem propriedade de um grupo, de uma crença ou descrença e não fosse, primeiramente, a condição comum a todo o ser humano nas diversas situações e organizações.
Não chega já uma pastoral orientada para o gosto folclórico de ritmo marcado; a nova pastoral terá de se centrar menos na moral e mais na espiritualidade cristã e possibilitar o acesso à compreensão da filosofia cristã para se viver a espiritualidade cristã de maneira mais consciente e poder dar resposta qualificada às questões e impostações do cidadão secular; só assim poderá a pessoa reconhecer-se a si mesma e reconhecer a essência dos valores e dos diferentes fenómenos da sociedade em que vive.
A vida não se realiza aos saltos, mas passo a passo… Aqueles cristãos que têm um molde de salvação mais conservador e idealista terão de reconhecer, também, nos outros a legitimidade de uma matriz de salvação de caracter mais progressista e realista. Uns e outros expressam o brilho da Ecclesia!
O perfecionismo moral torna-se, muitas vezes, num impedimento ao desenvolvimento porque pretende antecipar e resumir num momento o que será resultado de um processo. Não se pode caminhar com o caminho completo já no bolso! O humano é o microcosmo de um universo em contínuo desenvolvimento e num processo de resposta ao chamar do Criador. Como protótipo do Homem, o cristão tem Jesus Cristo numa tensão entre imanência e transcendência. Como pessoas humanas, somos seres inacabados em contínuo sistema de crescimento gradual, daí a necessidade de reajustamentos dinâmicos. Que a Igreja aponte para o processo e para a responsabilidade da consciência individual (também ela em contínua formação), é mais que óbvio e pressupõe a abertura e a confiança que Pedro teve, ao superar o medo, para poder seguir Jesus que andava sobre as águas.
A Igreja de Braga está com o Papa Francisco e quem está com o Papa está com o futuro e com a Igreja Universal.
(1)“Construir a Casa sobre a Rocha”: http://www.diocese-braga.pt/media/contents/contents_It6SIR/construir%20a%20casa%20sobre%20a%20rocha.pdf
(2) https://portal.oa.pt/comunicacao/imprensa/2018/01/17/duplicam-os-catolicos-que-querem-anular-casamento/
Por António da Cunha Duarte Justo
Teólogo e Pedagogo
Pegadas do Tempo