Atacaram o meu Hotel em Cabul!

Por Carlos Fino

O Intercontinental de Cabul foi este sábado alvo de um ataque terrorista – já reivindicado pelos Taliban – que provocou pelo menos 30 mortos, 14 dos quais estrangeiros – e levou pessoas que viviam no hotel a improvisar uma fuga dramática com recurso a lençóis atados pendurados das janelas e varandas.

O episódio – mais um da guerra interminável que se trava naquele país asiático, onde nem a presença continuada da OTAN/NATO consegue dar consistência ao governo local – trouxe-me à memória a primeira das minhas duas passagens pelo Afeganistão.

Vivi uns dias no Intercontinetal de Cabul, em 1993, quando cobri para a RTP a tomada da capital afegã pelos mujahedeen.

Vindos das extremente duras condições em que viviam nas montanhas, após anos de luta de guerrilha contra o exército soviético, esses homens de outras eras e mentalidades – ajudados financeira e militarmente pelos EUA e pelo Paquistão – estavam naturalmente deslumbrados com as instalações, mesmo no estado decadente em que se encontravam na altura – móveis quebrados, sujidade por todo o lado e com a pouca água que saía das torneiras de uma tonalidade castanho escura, não dando sequer para tomar banho e muito menos para lavar os dentes…

Cruzava-me com eles, todos barbudos e fortemente armados, de boina afegã ou turbante, conforme os grupos, no hall e nos corredores, onde faziam as suas repetidas orações diárias e montavam guarda, baionetas em riste, à porta dos quartos dos ayatollahs…

À hora das magras (e sanitariamente muito duvidosas) refeições, tínhamos que dividir o espaço com eles, com as kalashnikov em cima das mesas ou empinadas no chão, encostadas às cadeiras, prontas a servir a qualquer momento…

No dia da chegada, à noite, apanhei um dos maiores sustos da minha vida quando inesperadamente canhões e baterias anti-aéreas instaladas nas imediações e na própria entrada da garagem do hotel começaram a disparar, fazendo um barulho ensurdecedor.

Saí do quarto, assustado, sem saber o que se passava, com medo de que estivéssemos a ser alvos de um ataque… Afinal não havia perigo – os diferentes grupos que tomaram conta da cidade estavam apenas a celebrar a vitória, cada um disparando para o ar, num festival de estrondo e balas tracejantes cruzando os céus…

Agitado, fiquei desperto boa parte da noite e só o extremo cansaço me concedeu, já madrugada, um par de horas de sono…

No dia seguinte, verificou-se que os bombardeamentos e disparos indiscriminados tinham feito numerosas vítimas, que afluíam agora ao único hospital que na época funcionava com um mínimo de condições – o da Cruz Vermelha Internacional…

Já então o Intercontinental foi alvo de ataques, quando, passado o breve momento da vitória sobre o adversário comum- as forças apoiadas pela URSS – as diferentes facções dos mujahdeen começaram a lutar entre si. Cheguei até a presenciar, nesses dias, uma tentativa de assalto, bem na entrada principal, que foi entretanto rapidamente abortada…

A insegurança era o pão nosso de cada dia. Os aviões, incluindo aqueles em que cheguei e parti, faziam as aterragens e levantavam voo sob disparos de “flares” para dissipar eventuais ataques de mísseis…

Pelas condições naturais extremamente agrestes e pela complexidade das divisões étnicas e tribais, o Afeganistão foi o lugar mais difícil onde trabalhei em toda a minha vida de repórter.

Havia trechos do teritório por onde andei de carro que me faziam lembrar as agruras que um dia passei no mar, rumo às Berlengas, ao largo da costa portuguesa…

Mas, do alto do monte onde fica o hotel, tem-se uma bela vista sobre o vale no qual se espraia a cidade… Eu e o repóter de imagem georgiano Vadim Meskhi, que me acompanhava, chegámos a desfrutar alguns momentos de repouso, por entre o gorgeio dos pássaros, junto às árvores floridas que rodeiam o hotel, fumando um cigarro com Cabul aos nossos pés…

Por Carlos Fino
Jornalista português, nascido em Lisboa, em 1948. Correspondente da RTP – televisão pública portuguesa – em Moscou, Bruxelas e Washington, destacou-se como correspondente de guerra, em conflitos armados na ex-URSS, Afeganistão, Oriente Médio e Iraque. O primeiro repórter a anunciar, com imagens ao vivo, o bombardeio de Bagdad pelas tropas norte-americanas na Guerra do Golfo (2003). Foi conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal em Brasília (2004/2012). Escreve semanalmente para o Jornal Mundo Lusíada.

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