Da Redação com Lusa
Amália Rodrigues “abriu caminho à poesia ‘erudita’ no fado”, afirma a poetisa Maria Rosário Pedreira no livro “Esse Fado Vaidoso”, uma antologia de poemas de autores eruditos, que organizou em parceria com a fadista e poetisa Aldina Duarte.
Na “introdução”, Maria do Rosário Pedreira, também ela autora de poemas cantados no fado, detalha o método de trabalho e as preocupações tidas ma escolha dos 76 autores que constituem a antologia, entre eles os muito cantados Fernando Pessoa, José Carlos Ary dos Santos, David Mourão-Ferreira, Pedro Homem de Mello, Manuel Alegre, Vasco de Lima Couto e Mário Cláudio, sem esquecer autores medievais como João Roiz de Castelo Branco e o renascentista Luís de Camões.
As autoras da antologia pretendem “oferecer o maior número possível de autores”, apresentados por ordem alfabética e optando pelos títulos dos fados e não os originais dos autores, pois há discrepâncias.
Amália Rodrigues, refere Rosário Pedreira, “apaixonara-se por ‘Naufrágio’, de Pedro Homem de Mello, e lho ‘surripiara’ cantando-o como ‘Fria Claridade’, título que combinava inteligentemente palavras e ideias do próprio texto”.
Maria do Rosário Pedreira refere a sua experiência com o poema “Por Tanto Mal que não Fiz” que, a pedido do compositor Ricardo Cruz, passou a chamar-se “Fado Desconcertado”, uma criação de António Zambujo.
Autora de fados como “Pontas Soltas”, criação de Carlos do Carmo, “Os Pontos nos ii”, por Aldina Duarte, ou “Ao Deus Dará”, de Pedro Moutinho, entre outros, Pedreira refere as contingências de escrever para se cantar, tendo levado muitos fadistas a fazer algumas mudanças de palavras.
Há “expressões ou palavras que resultam bem num poema lido em silêncio, mas são ‘incantáveis’”, e cita a sua experiência num poema para o repertório de Aldina Duarte, em que Pedreira usou a expressão “a rota” e que Aldina explicou que cantando soaria a “arrota”.
Atualmente Rosário Pedreira escreve a sua versão do poema e, ”numa página à parte, várias alternativas a estrofes, versos e partes de versos, caso os intérpretes se sintam mais confortáveis com algumas delas”. A poetisa reconhece que a intervenção do fadista na versão “cantável” “contribuiu geralmente para melhor”.
“Os fadistas faziam desde há muito esta espécie de batota com os poemas”, refere Pedreira. Há várias alterações, desde logo de género, como em “Canção Grata”, de Teresa Silva Carvalho, gravada pela própria e também por Carlos do Carmo, mas há outras trocas, como ”prados” por “plainos” em “Cavaleiro Monge”, de Fernando Pessoa, do repertório de Mariza.
Nesta antologia estão de fora versões e traduções de autores eruditos estrangeiros, nomeadamente poemas de William Shakespeare cantados por Cristina Branco, numa versão de Vasco Graça Moura, mas incluíram-se “as adaptações, no fundo meras atualizações” de autores como o rei Dinis ou de João Garcia de Guilhade, feitas pela poetisa Natália Correia.
A passagem do poema para fado implica algumas alterações por parte dos intérpretes fadistas, desde a pontuação à forma, como explica Rosário Pedreira.
“Há tercetos transformados em sextilhas, texto corrido dividido em quadras, versos suprimidos ou aumentados”, tendo havido necessidade de recorrer à Sociedade Portuguesa de Autores para obter “as letras que nunca figuraram em livros” mas foram gravadas. Um “cotejo” que levou as poetisas a recorrer a alfarrabistas e a autores ainda vivos.
“Em alguns sonetos os tercetos eram transformados em quadras (ainda que o material acrescentado fosse um cozinhado de versos do próprio poema)”, noutros casos, “certos textos por serem mais longos do que o desejável eram cortados”.
Pedreira cita Vítor Pavão dos Santos, segundo o qual o compositor Alain Oulman fez esta prática para fados gravados por Amália em poemas de Bernardim Ribeiro, José Régio e Reinaldo Ferreira.
Segundo Pedreira há “muitíssimos mais” por outros fadistas, e “mesmo Camões não se livrou de uma ou outra amputação”.
Aos poemas há a acrescentar as melodias, muitas delas do cancioneiro tradicional do fado – fado menor, Mouraria, Pedro Rodrigues, Freira, Santa Luzia ou Meia-Noite, entre as suas cerca de 200 melodias -, além dos poemas com música própria.
Quando Amália, em meados da década de 1940, descobriu num jornal o poema “As Penas”, erroneamente atribuído a Guerra Junqueiro, pois o seu autor é Fernando Caldeira, o recurso aos “poetas eruditos” “poderia passar, por assim dizer, a um fado mais vaidoso”.
Todavia, é o encontro de Amália com Alain Oulman que lhe trouxe, e ao fado, “bastantes escritores” desde medievais, como Pedro Viviães, ao contemporâneo Manuel Alegre. P
Para a fadista “além de Oulman, David Mourão-Ferreira terá representado um dos mais felizes casamentos de poesia e voz”. Mourão-Ferreira escreveu mais de uma dezena de poemas para a voz de Amália, além de versões, como “Barco Negro”.
Outro “par perfeito”, voz e poesia, foi Carlos do Carmo e Ary dos Santos. De Carlos do Carmo, Pedreira cita o álbum “Mais do que Amor é Amar” (1986), “em que inclui poesia portuguesa desde Almeida Garrett até José Saramago, passando por Carlos Oliveira”.
A antologia “Esse Fado Vaidoso” inclui ainda uma seleção de gravações dos diferentes poemas, uma espécie de lista de audição recomendada que inclui os mais variados fadistas: Amália, Mísia, Ricardo Ribeiro, Carminho, Camané, João Braga, Katia Guerreiro, Pedro Moutinho, Carlos do Carmo, Celeste Rodrigues, Sandra Correia.