Por Carlos Fino
“… o que mais me repugna na América não é a extrema liberdade que lá reina, mas a pouca garantia que encontramos contra a tirania.” Alexis de Tocqueville, in A Democracia na América
Toda a minha carreira profissional de jornalista teria sido incompleta se não tivesse tido a grata oportunidade de conhecer e trabalhar nos Estados Unidos, incluindo a vivência de uma campanha eleitoral – as eleições presidenciais de 2000.
Durante dois anos como correspondente da RTP em Washington (1998/2000), pôde vivenciar no dia a dia o espírito de extrema abertura que neles se vive, em particular no que respeita à livre expressão do pensamento. Não existe provavelmente outro país do mundo que se lhes possa comparar nesta matéria.
Lá, como em nenhum outro, as pessoas e instituições estão em geral disponíveis para dizer o que pensam e o que querem, esperando dos seus interlocutores que façam o mesmo – o que constitui um importante estímulo à celebração dos negócios e à resolução dos problemas.
Enquanto os seus concorrentes, em particular europeus, se embaraçam em formalidades e teias burocráticas, os norte-americanos vão straight to the point, o que lhes confere a enorme vantagem de chegar primeiro: sobem ao podium quando outros ainda estão a dar a volta ao estádio…
Nos EUA, há todo um ambiente propício ao exercício do jornalismo, um estado de espírito em geral media friendly, não existindo praticamente organização ou instituição que não tenha os seus public relations preparados, treinados e disponíveis para acolher as solicitações dos media, muitas vezes até com imagens prontas para poder ilustrar matérias e completar entrevistas – os chamados b-rolls.
Esse espírito de liberdade – a par de um sentimento de geral igualdade entre os homens que faz com que todos se saúdem olhos nos olhos, com um simples “Hi!” – é uma das grandes heranças dos pilgrims, os pioneiros que no início do século XVII fundaram as primeiras colónias na Nova Inglaterra.
Deles vem também a herança da participação de todos na resolução dos problemas, quando os primeiros colonos instauraram, à maneira da velha Atenas, processos de decisão em que todos participavam e decidiam – base desde então e até hoje de uma vida associativa de grande intensidade.
Pôde observar isso em diversas ocasiões – desde reuniões de escola e de bairro até à participação eleitoral nos cáucus de Iowa e New Hampshire – as votações onde os candidatos à presidência do país testam pela primeira vez a sua popularidade.
Dos mais simples aos melhor colocados, das donas de casa aos alunos e professores universitários, milhares acorrem descontraidamente às escolas, ginásios e outros espaços públicos para ouvir os que os políticos têm para dizer, que soluções preconizam para os problemas do país, votando depois segundo as suas preferências, em boa parte determinando qual deles irá ser o candidato do partido às eleições presidenciais a consagrar nas respectivas convenções nacionais.
É a regra do voto maioritário, outra herança dos peregrinos do século XVII, que acabou por ser a dominante em tudo ou quase tudo na América.
Acompanhar uma campanha eleitoral nos Estados Unidos, seguir os candidatos através do imenso território, costa a costa, é uma experiência inesquecível, que ilustra esses lados luminosos da herança democrática americana, os princípios básicos em que assenta ainda hoje o sistema político do país.
Perigos e estereótipos
Mas é também uma oportunidade de ver ao vivo como outros fenómenos que os pilgrims não podiam prever se vieram juntar a essa estrutura, a ponto de a poderem ameaçar – desde a subordinação dos candidatos aos grandes interesses económicos à formatação estereotipada das campanhas pelas agências de marketing.
Para atingir a grande massa do eleitorado, os partidos precisam de pagar spots publicitários a difundir nas grandes cadeias de televisão nacionais. É através desses spots – pequenos filmes de minuto e meio a três minutos, como se fossem notícias – que se promovem as biografias dos candidatos e destroem, por vezes com grande virulência, as dos adversários.
Realizados por profissionais do agit-prop moderno, com base em pesquisas de opinião qualitativas, esses minutos de TV custam milhões, quer para filmar e montar, quer sobretudo em termos de tempos de antena cobrados pelas grandes estações. Um financiamento que candidatos democratas e republicanos vão buscar junto das empresas ou grupos de interesses, com o risco de comprometerem a sua independência futura quando chegarem ao poder.
As campanhas tornam-se assim previsíveis de cidade para cidade. Tendo acompanhado George W. Bush, eu já sabia, por exemplo, quais eram as frases de efeito e até os minutos da intervenção do candidato a que elas seriam proferidas. Uma das que me lembro era a célebre frase contra os impostos do governo federal em que se deixava no ar a ideia de que as pessoas podiam ficar com esse dinheiro – “It’s not the government’s money – it’s the people’s money!” à qual sempre se seguiam fortes aplausos…
Os estereótipos abrangiam também a cenografia – desde a chegada do candidato de avião ou helicóptero num base aérea, aos grupos de pessoas convocadas para estar no palco por detrás do podium onde teria lugar a intervenção – geralmente incluindo rostos de diversas raças e grupos étnicos para ir ao encontro dos diferentes grupos populacionais do país.
Mas o aspecto mais preocupante é o que se prende com o domínio absoluto do voto maioritário, a ponto das opiniões generalizadas poderem limitar os direitos da minoria – um perigo para o qual chamou a atenção, já no século XIX, o historiador e politólogo francês Alexis de Toqueville, no seu clássico A Democracia na América.
Escrevia ele argutamente que “não há monarca tão absoluto que possa reunir em sua mão todas as forças da sociedade e vencer as resistências, como pode fazê-lo uma maioria investida do direito de fazer as leis e executá-las”, chamando a atenção para o facto de que o remédio para esse perigo encontra-se, nos EUA, mais nos hábitos e costumes da população do que propriamente na letra da lei.
É na formatação generalizada a que os direitos absolutos da maioria submetem a vida política e mental do país – chegando a limitar por via do politicamente correto, a capacidade de se gerarem ou admitirem alternativas – que porventura reside o paradoxo de encontrarmos numa sociedade tão livre como é a dos EUA estereótipos de pensamento e comportamento como os que vemos magistralmente ironizados numa série como os Simpsons.
Não deixa, a propósito, de ser significativo que o New York Times dedique, nestes dias, na sequência da avalanche Donald Trump, toda uma série de artigos sobre o eventual perigo de tirania na América: http://www.nytimes.com/roomfordebate/2016/05/12/is-tyranny-around-the-corner?emc=edit_ty_20160512&nl=opinion&nlid=69442337
Outro paradoxo que se revelou nas eleições de 2000 entre Bush filho e Al Gore, foi termos todos descoberto com estupefacção que na era da internet o país tecnologicamente mais avançado do mundo ainda continuava a debater-se com sistemas de votação manuais inadequados a ponto de comprometerem o resultado eleitoral e deste ter de ser decidido pelo Supremo, mesmo à custa de desprezar milhares de votos que ficaram por contar.
Por tudo isso, como ensinou Tocqueville, na América devemos buscar, mais do que exemplos para copiar, ensinamentos a reter, destacando o essencial – os princípios de ordem, respeito pelo direito, equilíbrio dos poderes e liberdade, indispensáveis, esses sim, a todas as repúblicas.
Por Carlos Fino
Jornalista português, nascido em Lisboa, em 1948. Correspondente da RTP – televisão pública portuguesa – em Moscou, Bruxelas e Washington, destacou-se como correspondente de guerra, em conflitos armados na ex-URSS, Afeganistão, Oriente Médio e Iraque. O primeiro repórter a anunciar, com imagens ao vivo, o bombardeio de Bagdad pelas tropas norte-americanas na Guerra do Golfo (2003). Foi conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal em Brasília (2004/2012). Escreve semanalmente para o Jornal Mundo Lusíada