Amália representa a mais fulgurante carreira musical do século XX em Portugal

Da Redação
Com Lusa

A fadista Amália Rodrigues, nascida há cem anos, em Lisboa, protagonizou a mais fulgurante carreira musical do século XX em Portugal, dizem especialistas, como o seu antigo editor e os investigadores da sua obra.

O escritor Miguel Esteves Cardoso e o editor discográfico David Ferreira justificaram à Lusa este êxito, dentro e além fronteiras, como revelador da sua voz e da “inteligência com que Amália cantava”.

A fadista nasceu, oficialmente, a 23 de julho de 1920, em Lisboa, no seio de uma família originária da Beira Baixa.

Amália estreou-se em 1939, no então Retiro da Severa, em Lisboa, e, em 1940, atuou já como “atração nacional” no teatro de revista.

Em 1943 atuou pela primeira vez no estrangeiro, em Madrid, com o fadista José Porfírio, a convite do embaixador Teotónio Pereira.

No cinema, estreou-se em 1947, sob a direção de Armando Miranda em “Capas Negras”, ao lado Alberto Ribeiro. Voltou nesse mesmo ano ao cinema com “Fado, História de uma cantadeira”, de Perdigão Queiroga.

Protagonizou “Vendaval Maravilhoso” (1949), de Leitão de Barros, “Les Amants du Tage” (1955), de Henri Verneuil, e ainda “Sangue Toureiro” (1958), de Augusto Fraga, com quem tinha gravado, na década de 1940, uma série curtas-metragens de fados seus, antecipando os atuais ‘videoclips’.

Participou ainda nos filmes “Fado Corrido” (1958), de Jorge Brum do Canto, “As Ilhas Encantadas” (1965), de Carlos Vilardebó, “Via Macao” (1964), de Jean Leduc, e em “Bis ans Ende der Welt” (“Até ao Fim do Mundo”) (1991), de Wim Wenders.

Na televisão protagonizou, em 1968, a peça “A Sapateira Prodigiosa”, original de Federico García Lorca, na RTP, e na brasileira RecordTV participou na telenovela “Os Deuses Estão Mortos”, de Lauro César Muniz, em 1971.

Em 1973, também no Brasil, entrou na telenovela “Vitoria Bonelli”, de Geraldo Vietri, na Rede Tupi.

No teatro, além de várias revistas como “Alerta Está”, “Estás na Lua” ou “Boa Nova”, protagonizou a peça “A Severa”, de Júlio Dantas, ao lado de Paulo Renato e Costinha, entre outros, no Teatro Monumental, em Lisboa.

Uma carreira fulgurante, sem equiparação anterior, como a própria reconheceu. Passo decisivo, foi a sua primeira atuação no Olympia, em Paris, em 1956, na festa de despedida de Josephine Baker, e que Amália apontava como o início de uma imparável carreira internacional de sucesso, sem paralelo nacional.

“De Paris parti para o mundo”, afirmou Amália em várias entrevistas.

O técnico de som Hugo Ribeiro, que gravou quase todos os seus discos em Portugal, recordou, numa entrevista à Lusa, que na década de 1990, Amália foi convidada para uma digressão ao Japão, “mesmo sem cantar, queriam só ver a senhora”.

Todavia o percurso internacional de Amália Rodrigues começou antes do Olympia.

O nome da fadista era frequente nos espetáculos patrocinados pelo Plano Marshall (programa norte-americano de apoio à reconstrução da Europa, após a II Guerra Mundial). Será aliás num destes programas, realizado em Dublin que a canção “Coimbra”, de Raul Ferrão, iniciou também a sua imparável internacionalização. A canção tinha sido estreada no filme “Capas Negras”, por Alberto Ribeiro.

Amália cantou em Dublin, Londres, Paris e seguiu para Roma.

Data de 1950 a sua estreia em palcos italianos, no prestigioso Teatro Argentina. Como se tinha tornado hábito, Amália era a única artista ligeira, num cartaz em que faziam parte as sopranos Maria Caniglia e Rita Streich, o violoncelista Jacques Thibault e o tenor Fiorenzo Tasso, acompanhados por uma orquestra sinfônica.

Com Amália iam Raul Nery, à guitarra portuguesa, e Santos Moreira, à viola, “só os três naquele palco operático”, como enfatizou a fadista anos mais tarde.

O certo é que foi Amália a “Regina della notte” (“Rainha da noite”), como a ela se referiu a imprensa italiana e a fadista confidenciou mais tarde que terá tido o primeiro “‘chilique'” da sua vida, pois a emoção foi tão grande que quando terminaram os longos aplausos, saiu de cena e tanto chorava como ria.

Voltou a Itália nas décadas seguintes e, com grande sucesso, na atuação de 1970, o sucesso de Amália foi referenciado pela imprensa como “La folia per la Rodrigues”.

O público italiano respondia à cantora “como nenhum outro”, segundo o investigador Frederico Santiago, que tem coordenado as pesquisas e a edição da sua discografia.

Os programas do Plano Marshall eram transmitidos através da rádio para toda a Europa, mas Amália já atuara com assinalável êxito em Madrid, tendo até despertado um “‘piquinho’ de ciúme [artístico]” a Conchita Piquer, que se recusou a emprestar-lhe um xaile para atuar.

Amália tinha-se apresentado, também com êxito, no Rio de Janeiro, numa companhia de revista e num espetáculo concebido para si, “Uma aldeia portuguesa”, que foi projetado como “uma embaixada musical portuguesa”, a ponto de um dos vestidos de cena de Amália, assinado por Pinto de Campos, ser inspirado no trajo de lavradeira rica do Minho. Entre os adereços que compunham o pesado fato, tinha à frente, na cintura, o escudo nacional.

Foi no Brasil, em 1945, que Amália registou pela primeira vez a sua voz em disco, incluindo já um tema escrito por si, “Corria atrás das cantigas”, mas do qual na altura não assumiu a autoria. As gravações incluíram também canções em espanhol.

A artista realizou prolongadas estadas no Brasil, onde casou pela segunda vez, em 1961, com César Henrique de Moura de Seabra Rangel.

Em 1972, realizou uma série de espetáculos, sempre esgotados, “Um amor de Amália”, no Canecão, no Rio de Janeiro.

Depois de Espanha, Brasil e dos espetáculos do Plano Marshall, foi sob o patrocínio de António Ferro, do então Secretariado de Propaganda Nacional, que Amália atuou em Londres e Paris, em 1949, respetivamente no Ritz e no Chez Carrère, e na reinauguração da Casa Portugal.

Apesar das boas críticas, Paris só a “descobriria” poucos anos mais tarde, e já sob o efeito da sétima arte, designadamente através do filme “Les amants du Tage”, onde Amália interpretou novos poemas que para si escreveu David Mourão-Ferreira, para composições como “Canção do Mar”, de Ferrer Trintade, e “Mãe Preta”, de Caco Velho e Piratini.

Paris foi também o local do encontro, em 1959, com Alain Oulman, compositor que trouxe um inovador fôlego à sua carreira, tendo composto temas como “Gaivota”, “Maria Lisboa” ou “Fado Português”, entre outros.

Segundo uma biografia publicada em 2005, pela editora Planeta Agostini, “Amália Rodrigues estabeleceu uma rede de afetos com a Língua Portuguesa, atuando nos mais variados palcos do mundo”, tendo cantado autores como David Mourão-Ferreira, Cecília Meirelles, Teresa Rita Lopes, Pedro Homem de Mello, Luís de Camões, António Feliciano de Castilho, Alexandre O’Neill e Luís de Macedo, entre outros, como os poetas trovadorescos ou João Linhares Barbosa.

Amália gravou também noutras línguas, apesar do seu confessado receio de “falhar na pronúncia”.

O editor discográfico David Ferreira salientou à Lusa que, “quando Amália cantava noutras línguas, não estava a fazer variedades, era a sério, e era extraordinária”.

A fadista atuou com estrondoso sucesso no México, nomeadamente cantando ‘rancheras’, a ponto de pesquisarem a sua genealogia para averiguar se teria raízes mexicanas.

Em 1954, nos Estados Unidos, atuou pela primeira vez na televisão e gravou um álbum de fado e flamenco, gênero que muito apreciava e com o qual se identificava, tendo afirmado: “Sou uma cantora ibérica”.

Regressou várias vezes aos Estados Unidos e foi aí onde se deu o encontro com o cineasta Bruno de Almeida, autor de um documentário sobre a sua carreira, e que registou o seu espetáculo no Town Hall, em Nova Iorque, em novembro de 1990.

A criadora e autora de “Estranha forma de vida”, que gravou no Fado Bailado, de Alfredo Marceneiro, atuou com êxito no Japão, Itália, ex-URSS, Romênia, Israel, Líbano, Espanha, França, China, Canadá, Bélgica, Grécia, Suécia, Países Baixos, Timor-Leste e nas então províncias ultramarinas, entre outros territórios.

Amália foi “a nossa maior embaixadora” como se lhe referiu o Presidente da República Mário Soares, no seu último espetáculo em Lisboa, em 11 de dezembro de 1994, no Coliseu dos Recreios.

Ao longo da carreira, Amália colecionou vários troféus, entre os quais três Prémios MIDEM (Mercado Internacional do Disco e Espetáculos Musicais).

O Estado português condecorou-a em 1958, com o grau de “Dama” da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada, em 1971, com o grau de “Oficial”, e, em 1990, elevada a Grã-Cruz desta ordem.

Em 1981, recebeu a Ordem do Infante D. Henrique (grande-oficial), e, em 1998, recebeu a respetiva Grã-Cruz.

A França, em 1970, outorgou-lhe o grau de Dama da Ordem das Artes e Letras sendo elevada, em 1985, ao grau de Comendadora. Em 1991, concedeu-lhe o grau de Dama da Legião de Honra.

O Líbano condecorou-a, em 1971, com a Ordem dos Cedros, a sua mais prestigiada ordem honorífica, e Espanha, em 1968, entregou-lhe o Laço de Dama da Ordem de Isabel A Católica e, mais tarde, a Grã-Cruz desta Ordem.

Amália desde a sua estreia, em 1939, no Retiro da Severa, até ao seu discreto recolhimento, na década de 1990, na sua casa em S. Bento, em Lisboa, teve sempre pessoas que a seguiam e “a idolatraram”. “As cartas nunca pararam de chegar a São Bento”, recordou, anos mais tarde, a sua secretária e amiga Estrela Carvas.

A fadista morreu na sua residência em Lisboa, em 06 de outubro de 1999.

O Governo decretou três dias de luto nacional. Foi a primeira mulher a estar sepultada no Panteão Nacional, desde julho de 2001.

A sua interpretação, nos mais diferentes registos, do fado tradicional ao fado com refrão, à canção ligeira ou folclórica, continua hoje a ser uma constante descoberta para as novas gerações, fonte de inspiração e “uma referência incontornável”, “padrão de subida qualidade pelo qual todos se aferem”, como afirmou o estudioso de fado Luís de Castro.

Amália “deu ao fado uma ressonância universal”, afirmou, em 1991, o Presidente francês François Mitterrand, e foi, nas palavras do ator Raul Solnado, “o mais extraordinário fenômeno do nosso tempo”.

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