Por Maria Manuela Aguiar
1 – Adriano Moreira deixa uma imensa saudade nos seus amigos e um lugar na história de Portugal e na das instituições académicas. Um lugar de primeiro plano. Na Academia tem o que conquistou com a sua cultura científica e o seu prodigioso poder de comunicação, tanto pela escrita como pela palavra. No domínio da política deixou a sua marca em dois regimes, mas não quis o destino (ou as engrenagens com que o jogo partidário, tantas vezes, barra ou fabrica os líderes) que fosse tão longe quanto deveria ter ido. Tinha qualidades que raramente interagem na mesma pessoa – inteligência e caráter, capacidade de pensar o futuro e de o fazer acontecer. E, também, carisma e simpatia. Era o melhor da sua geração! Não sei se teria conseguido impor a transição democrática contra os ultras do regime, mas sei que, mais do que qualquer outro, o teria tentado. Esta certeza fundamenta-se numa espécie de “provas dos nove” que é o admirável projeto por ele desenvolvido, a partir de 1964, na qualidade de Presidente da Sociedade de Geografia: a organização dos primeiros Congressos das Comunidades de Cultura Portuguesas. E porquê? Porque foram congressos já verdadeiramente pós-coloniais, voltados para o futuro, a apostar num diálogo de iguais, entre povos da lusofonia. De todos os interessantes textos escritos em sua homenagem, por ocasião da sua partida, aos 100 anos de idade, não li referências a essa espantosa iniciativa.
A omissão é, apenas, talvez, mais uma mostra do ignorância e descaso nacional pela nossa emigração, e pela sua relevância estratégica. Adriano Moreira constituiu a exceção. Eu não poderia esquecê-lo porque esse seu feito foi o motivo do nosso primeiro encontro, a meu pedido, em 1980, quando tinha em mãos o anteprojeto de lei fundador do Conselho das Comunidades Portuguesas, previsto no programa eleitoral do Governo de Sá Carneiro. Aceitou, de imediato, e deu-nos preciosos ensinamentos sobre a realidade do movimento associativo, a nível mundial, e sobre aspetos muito concretos da organização de uma estrutura federativa. Nascera para ensinar, era um pedagogo nato, e como constatei, ao longo de quatro décadas, falar com ele resultava sempre em aprender algo de novo, qualquer que fosse o assunto. Um sábio e um bom conversador, um “tertuliano”, dotado de singular sentido de humor!
2 – A preocupação e o pensamento de Adriano Moreira sobre o mundo lusófono foram, evidentemente, sublinhadas em muitos escritos, mas não os Congressos da Sociedade de Geografia, com os quais, na meia década de sessenta, abriu os caminhos a um projeto futuro, que veio a chamar-se CPLP. Na sua veste de cidadão chegou até onde não tinha podido ir no desempenho de um alto cargo público.
Portugal era o único país europeu de emigração a não ter, um movimento associativo de âmbito transnacional, institucionalizado em Uniões ou Federações, que todos os demais haviam criado nos primórdios do século XX. Os portugueses demonstraram sempre o maior pendor associativo nas sociedades de destino, muito em especial no Brasil, mas, estranhamente, nunca, até então, tinham procurado unir-se, para além do limite das fronteiras de cada Estado. E da parte de governantes que, durante cinco séculos de êxodo incessante, nunca o apoiaram com políticas públicas, também não houvera vontade de promover esse objetivo, certamente por desvalorizarem a importância da presença universal dos emigrantes, muito mais fraterna e muito mais perene do que o império, no seu ciclo de vida e de morte.
Foi preciso esperar por Adriano Moreira, na meia década de sessenta, para que avançasse um movimento internacional tardio, mas mais ambicioso do que qualquer outro, porque o seu projeto não se focava estritamente no campo das migrações, antes se alargava à inteira dimensão da presença de Portugal no mundo – fruto da história que foi escrita pelo povo anónimo, à margem de um projeto imperial.
É, como disse, sintomático do distanciamento de Adriano Moreira face questão colonial, o facto de, em 1964, pouco depois de abandonar funções ministeriais, e em situação de guerra , ter convocado os Congresso das Comunidades de Cultura Portuguesa, centrados nas migrações, enquanto matriz de lusofonia e de lusofilia, a fim de repensar o papel do país no mundo, pela força da cultura, não das armas. O 1º Congresso foi realizado em Lisboa, o 2º em Moçambique, o 3º estava previsto para o Brasil – por igual, terras da lusofonia… As atas, publicadas em seis densos volumes, dão-nos um retrato de época de comunidades da lusofilia, com natural destaque para o Brasil – um retrato tirado no tempo em que se envolvem na construção de um espaço planetário de cooperação e amizade. Mas eis que o regime coloca barreiras ao movimento, e o 3º Congresso já não reúne, do outro lado do Atlântico…
3 – Num colóquio parlamentar, a que presidi, 40 anos depois, o Prof Adriano Moreira contou como, em clima de crise profunda, ousou criar dinâmicas de mudança: “a ideia traduziu-se numa espécie de sistematização do que era a presença de Portugal no mundo do ponto de vista das comunidades”. Para além das comunidades de primeira geração, nos conceitos operacionais que delineou distinguia comunidades de luso-descendentes, com ligação às raízes, e, ainda, as comunidades filiadas na cultura portuguesa, formadas por “povos pelos quais tinha passado ou a soberania ou a evangelização portuguesa”.
Uma pergunta curial: onde ficavam, na sua sistematização, os povos das colónias? O Prof Adriano Moreira deu a resposta, apontando esse problema de concetualização como o responsável pelo desenlace fatal: “Imagino que foi isso que acabou por fazer parar o movimento”.
A leitura das atas dos Congressos não deixa margem a dúvidas sobre a sua posição pessoal. Para ele, o traço de união entre todos os povos lusófonos era a cultura, máximo denominador comum, que gerava consensos e mobilizava ânimos.
O Império de Marcelo Caetano chegava ao fim. A Comunidade de Adriano Moreira ficava apenas adiada. A partir do Brasil, a CPLP iria ser impulsionada, por outro visionário, (e outro meu grande amigo), o Embaixador José Aparecido de Oliveira, que publicamente reconheceu ter-se inspirado no congressismo pioneiro de Adriano Moreira.
A CPLP atual bem andaria em regressar às origens, escutando o eco da voz dos seus precursores, aceitando o primado da Cultura. Que falta nos fazem políticos dessa estatura!
Por Maria Manuela Aguiar