Um acordo de empobrecimento da língua e de interesses geoestratégicos
O assunto não é fácil, atendendo às diferentes grafias (europeia, brasileira e africana) e aos interesses políticos, econômicos e culturais a elas subjacentes. O Acordo ortográfico vem beneficiar a grafia brasileira em relação à grafia luso-africana da língua portuguesa. Na sua forma possibilita assim uma maior concorrência, salvaguardando sobretudo interesses geopolíticos e económicos do Brasil.
O maior problema na génese e no processo do acordo, encontra-se, a meu ver, num espírito simplicista e vulgar, em via desde há décadas, na política cultural ocidental.
O maior problema manifesta-se na acentuação e na supressão das chamadas consoantes “mudas”, acabando-se assim com uma diferenciação etimológica insubstituível para a boa compreensão das palavras.
Para se perceber um pouco o fundamento dos que questionam o acordo e para se ter uma ideia da riqueza da exatidão das palavras, apresento a etimologia das diferentes palavras portuguesas: facto, fato, fado e feito. As palavras portuguesas facto e feito vêm da palavra latina factu (do verbo facere=fazer); a palavra portuguesa fado vem da palavra latina latim fatu. A palavra portuguesa fato (roupa exterior do homem) virá do germânico fat. A palavra facto (realidade, verdade) é usada em todos os países lusófonos excepto no brasil que usa a palavra fato para designar facto e fato. Deu-se assim um empobrecimento da língua muito embora em benefício do povo com menos formação. (Apresento no final do artigo o exemplo de palavras provenientes do mesmo étimo latino para melhor se compreender a presença dum c ou dum p mudo na palavra, que levam à pronunciação aberta da vogal precedente). (Infelizmente em muitos dicionários virtuais já se abdica da diferenciação. Forças de interesse e ideologias procuram apagar os vestígios que os não servem. Isto acontece também no que respeita à disponibilidade de termos e de sinónimos no léxico).
Angola e Moçambique ainda não ratificaram o Acordo Ortográfico e naturalmente têm razões muito válidas para o não fazerem tal como os brasileiros e outros terão as suas para o fazerem. O “Jornal de Angola” ao lamentar o empobrecimento etimológico dum acordo ortográfico que se orienta pelo português falado ou pronunciado, mostra o busílis dum acordo que se orienta por um simplicismo redutor, traiçoeiro e mercantilista. Aqui os Angolanos manifestam-se contra a corrente entrópica ao exigir que “os que sabem mais têm o dever sagrado de passar a sua sabedoria para os que sabem menos” para não baixarem o seu nível.
O problema acentuou-se pelo facto de muitas objecções não terem sido resolvidos já na génese que prepararia o acordo ortográfico. Comete um grande erro quem parte para um acordo com base apenas no português falado. De lamentar seria naturalmente se não houvesse um acordo em defesa da língua. Por muitos erros que se cometam é melhor um acordo que nenhum; a não ser que se defenda a hegemonia do inglês.
O acordo ortográfico beneficia os que falam pior a língua. Por outro lado a língua não se mantem dependente de quem a melhor pode falar: padres, juristas, linguistas e médicos pelo facto de saberem a língua mãe, o latim.
O acordo é necessário para possibilitar a afirmação do idioma português no contexto internacional sem se atraiçoar a alma dos diferentes povos a veicular num português de afirmação global.
Os peritos que elaboram os acordos ortográficos deveriam dominar bem o latim e o grego; especialmente o latim.
O português é uma das línguas chamadas românicas, com a sua origem no latim, sendo uma evolução deste. O latim na sua expressão clássica manifesta um alto nível intelectual e na sua expressão popular (língua falada pelo povo: sermo vulgaris, cotidianus, plebeius, rusticus), com a sua riqueza fonética e morfológica, cria termos novos para expressar vocábulos por ele desconhecidos do latim erudito. Deste modo enriquece a língua, tal como hoje acontece com o português vulgar (provincianismos, e outras formas de formação, entre elas, os neologismos…).
A língua latina suplantou as línguas dos povos vencidos relegando, muitas vezes, as destes para dialectos. Na península ibérica, só o basco lhe resistiu. A língua latina abandonada a si mesma no povo, sem disciplina gramatical, na sua evolução, deu lugar a diferentes falares ou falas que depois deram origem a línguas. Um desses falares foi o galaico-português (também língua dos poetas) que, devido a circunstâncias políticas, deu origem aos idiomas, galego e português. A evolução do português já se pode documentar em monumentos e documentos notariais a partir do séc. VII num latim bárbaro (língua falada pelo povo). A partir do séc. XII os poetas apoderaram-se desse falar (galaico-português) que no séc. XVI se estabilizou no português e no galego. A partir de então temos o português moderno como podemos ver em Camões.
O latim afirmou-se por todo o lado. Na nossa língua, encontram-se também com certa frequência, termos de povos invasores (cerca de 600 palavras usuais germânicas e cerca de 600 palavras usuais árabes).
O vocabulário da língua portuguesa formou-se principalmente através do latim vulgar que se vai modificando através da fonética e da derivação de termos populares; uma outra forma de formação da língua foi a via erudita que de proveniência latina e grega se manteve mais próxima do padrão original latim e grego. O português tem uma fase arcaica que vai do séc. XII ao seculo XVI e uma fase moderna começada no séc. XVI (Camões).
Para melhor se poder compreender as divergências no que respeita ao acordo ortográfico e apelar ao respeito pela etimologia da língua, passo a dar exemplos da formação de termos em que o mesmo étimo latino origina duas palavras diversas. O Acordo Ortográfico nas suas coordenadas gerais deixa-se orientar mais pela via popular ou vulgar. De notar que, hoje como ontem, as pessoas mais simples têm tendência para não mastigar as palavras, ao contrário do que acontece no falar das pessoas mais eruditas. A maior traição ao português e à alma do falante dá-se porém na redução das pessoas verbais (eu tu ele (ela,você), nós vós, eles (vocês). A língua em vez de evoluir e de se diferenciar embrutece seguindo o princípio da inércia, ao eliminar o vós e ao evitar até o tu na linguagem falada (como já adverti noutros textos). Assistimos a um empobrecimento geral em questões. A ignorância não nota o que perde, ganha sempre!
A palavra latina factum deu origem à palavra portuguesa facto por via erudita e à palavra feito por via popular.
Simplificando: do latim focum originou-se foco por via erudita e fogo por via popular
do latim legalem originou-se legal por via erudita e à palavra leal por via popular
do latim matrem originou-se madre por via erudita e à palavra mãe por via popular
do latim Hispaniam originou-se Hispania por via erudita e à palavra Espanha por via popular.
do latim jactum originou-se jacto por via erudita e à palavra jeito por via popular
do latim alienare originou-se alienar por via erudita e à palavra alhear por via popular
do latim plenam originou-se plena por via erudita e às palavras cheia, prenha por via popular
do latim oculum originou-se óculo por via erudita e à palavra olho por via popular
do latim grandem originou-se grande por via erudita e à palavra grão por via popular
do latim angelum originou-se Ângelo por via erudita e à palavra anjo por via popular
do latim aream originou-se área por via erudita e à palavra eira por via popular
do latim arenam originou-se arena por via erudita e à palavra areia por via popular
do latim atrium originou-se átrio por via erudita e à palavra adro por via popular
do latim catedram originou-se cátedra por via erudita e à palavra cadeira por via popular
do latim conceptionem originou-se concepção por via erudita e à palavra conceição por via popular
do latim delicatum originou-se delicado por via erudita e à palavra delgado por via popular
do latim digitum originou-se dígito por via erudita e à palavra dedo por via popular
do latim dolores originou-se Dolores por via erudita e à palavra dores por via popular
do latim directum originou-se directo por via erudita e à palavra direito por via popular.
Desta observação podemos concluir que o povo simples simplifica (via popular) e os eruditos preferem a clareza.
Com acordo ou sem ele, cada pessoa deve ter a liberdade de escrever na grafia que aprendeu.
António da Cunha Duarte Justo
(Com diploma para latim e grego)
[email protected]
www.antonio-justo.eu