Por Carlos Fino
Do Cairo, no Egito, a Jakarta, na Indonésia; de Rabat, em Marrocos, a Istambul, na Turquia, passando por Beirute, no Líbano – uma onda de protestos percorre o mundo árabe e islâmico contra a decisão do presidente norte-americano, Donald Trump, de reconhecer Jerusalém como a capital do Estado de Israel.
Os protestos (incluindo em cidades europeias) ampliam um pouco por todo o mundo a compreensível indignação que a medida suscitou na Palestina, onde, no decorrer de “três dias de fúria”, ocorreram confrontos com as forças do exército israelita – da faixa de Gaza à Cisjordânia, passando pela própria cidade santa – dos quais resultaram pelo menos quatro mortos e centenas de feridos.
É o regresso em força à atualidade internacional do problema palestiniano, que parecia, nos últimos anos, ter sido esquecido, obscurecido que foi por guerras de maior intensidade como as que tiveram lugar ou ainda decorrem no Iraque, na Líbia, na Síria e no Iémen ou ainda pelas intensas manifestações da primavera árabe.
Se algum “mérito” a decisão de Trump teve foi justamente este – o de recolocar na ordem do dia, reclamando resolução, um conflito que permanece como ferida aberta no coração do mundo árabe e islâmico, fator permanente de instabilidade no Médio-Oriente, com repercussões negativas no mundo inteiro.
Embora recomendada pelo Congresso desde os anos 90, a transferência da embaixada americana de Telaviv para Jerusalém sempre tinha sido adiada por sucessivas administrações – quer republicanas, quer democratas – a fim de preservar espaço de manobra para Washington nas conversações de paz sobre o Médio-Oriente.
Ao dar unilateralmente esse passo, abdicando deste trunfo e “entregando o ouro ao bandido”, Trump concedeu gratuitamente, sem qualquer contrapartida, o que estava reservado para ser a concessão final de uma solução negociada em que fossem igualmente contemplados os interesses dos palestinos.
A medida teve ainda a “virtude” de unir nos protestos praticamente o resto do mundo: dos aliados dos EUA na região (Egito, Jordânia, Arábia Saudita, Emirados…) ao conjunto dos países europeus e ao próprio Papa, que na véspera defendeu a manutenção do estatuto de Jerusalém como cidade internacional, centro das três grandes religiões monoteístas: judaísmo, cristianismo e islamismo.
Uma evolução preocupante
A decisão de Trump é tanto mais controversa quanto é certo que ela não tem sequer o apoio da maioria judaica nos EUA, parecendo responder apenas ao desejo de satisfazer o poderoso lóbi evangélico americano (cerca de 1/3 do eleitorado republicano) que olha para Israel em termos de narrativa bíblica.
Além disso, vem dificultar enormemente toda a diplomacia americana na região, a começar pelo pretendido isolamento de Teerão, dada a crescente intervenção militar iraniana nos conflitos locais – da Síria ao Iraque, passando pelo Iémen.
A aproximação que sauditas e israelitas já vinham ensaiando nesse sentido, por exemplo, fica agora muito comprometida, ao mesmo tempo que os grupos islâmicos radicais – que sempre invocaram a injustiça contra os palestinos e a suposta “traição” dessa causa pelos governos árabes como razão da sua luta – têm agora mais um argumento para recrutar novos militantes.
É certo que entre os próprios palestinos, ao fim de décadas de luta em que foram sempre perdedores, o cansaço é hoje muito grande e o apetite por uma nova Intifada, a que apela a sua ala mais radical, o Hamas, pode não ser grande. Mas engana-se quem considerar que a causa palestina está hoje esquecida no mundo árabe – ela é ainda, por motivos culturais, políticos, religiosos e emocionais, muito forte entre as massas populares do Médio-Oriente e para além dele e não pode, por isso, deixar de ser tida em conta pelos governos locais.
Esquecer tudo isso e, como fez agora Trump, ceder ao impulso de satisfazer um lóbi local, por mais determinante que ele tenha sido para a sua própria eleição, não parece corresponder a qualquer política ou estratégia bem definida. Pelo contrário – constitui mais um indício de que, com este presidente, os EUA estão abdicando do seu papel de “nação indispensável” – não deram aval ao acordo transatlântico com a Europa, desistiram do transpacífico, questionaram a NAFTA, romperam com a UNESCO e praticamente abandonaram o acordo de Paris sobre o clima…
Não são boas notícias, uma vez que deixam espaço aberto a centros de poder que, à exceção da Europa, não são necessariamente garantes de valores democráticos.
No que respeita à Palestina, por mais dificuldades que se levantem, uma coisa parece certa – não há saída que não seja a de se chegar – como estabelecido pela ONU desde 1947 – à existência de dois Estados que mutuamente se reconheçam e colaborem.
Insistir, como faz o atual governo de Telaviv, numa política que visa, na prática, a criação de um Grande Israel, dificultando por todos os meios a consolidação de um Estado palestino (criação de mais e mais colonatos na Cisjordânia, anexação de territórios, etc.), não parece ter grande futuro, uma vez que Israel teria que controlar e discriminar em permanência, como agora já faz, uma população árabe que a demografia tende a tornar cada vez mais maioritária. Além de gritantemente injusto, seria cada vez mais impraticável.
Paradoxalmente, graças a Trump e contra a sua vontade, a Palestina está de volta e clama por justiça.
Por Carlos Fino
Jornalista português, nascido em Lisboa, em 1948. Correspondente da RTP – televisão pública portuguesa – em Moscou, Bruxelas e Washington, destacou-se como correspondente de guerra, em conflitos armados na ex-URSS, Afeganistão, Oriente Médio e Iraque. O primeiro repórter a anunciar, com imagens ao vivo, o bombardeio de Bagdad pelas tropas norte-americanas na Guerra do Golfo (2003). Foi conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal em Brasília (2004/2012). Escreve semanalmente para o Jornal Mundo Lusíada.