A lição da Síria, por Carlos Fino

Por Carlos Fino

Siria_TropasA narrativa ocidental sobre a guerra na Síria é simples – era uma vez um ditador chamado Assad contra o qual, em 2011, o povo se ergueu pedindo democracia; o ditador mandou prender, torturar e bombardear os rebeldes e aí começou uma guerra civil que dura até hoje. Uma guerra terrível, que já fez meio milhão de mortos e provocou milhões de refugiados – mais de metade da população, deixando um rasto de devastação e ruínas, a ponto de estar em causa a própria sobrevivência do país, agora retalhado em zonas de influência.

O problema com esta narrativa é que ela não se sustenta inteiramente. Tem, é certo, elementos de verdade – Assad é um ditador, a perseguição aos opositores é terrível, havendo até suspeitas (como no caso de Saddam, no Iraque) de utilização de armas químicas contra populações civis.

Mas esse esquema interpretativo deixa na sombra as razões mais profundas do conflito: o embate regional entre as duas grandes correntes do Islão – sunitas contra xiitas – e, tanto ou mais importante ainda, a luta pelos recursos energéticos da região.

O acordo a que chegaram Síria e Irão para construir um oleoducto para escoar o petróleo do Cáspio evitando a Turquia e concorrendo com os sauditas e os outros países do Golfo no fornecimento de petróleo ao Ocidente é apontado por especialistas como sendo uma das causas da guerra de que pouco ou nada se fala.

Esse enquadramento explicativo simplista, embora possa funcionar até certo ponto em termos de grande público, tem, além disso, debilidades evidentes que não resistem a um olhar minimamente crítico.

Se a questão é simplesmente uma luta da liberdade contra a ditadura, maus de um lado, bons do outro, como explicar que do lado dos “rebeldes” estejam alguns dos piores inimigos das democracias ocidentais – o chamado Estado Islâmico, a Al-Qaeda e a Al-Nusra?

Se esta guerra é só e principalmente um confronto entre liberdade e ditadura, como explicar que do lado da democracia estejam regimes tão prepotentes como os da Turquia, Arábia Saudita e Qatar?

O facto dos Estados Unidos apoiarem os chamados “moderados” não muda o essencial.

Sim, os moderados existem, não são mera ficção – mas o núcleo duro das forças anti-Assad é outro – o Estado Islâmico e a Al-Qaeda. E alguém tem dúvidas de que se Assad caísse seriam estas forças e não os democratas que a curto prazo iriam prevalecer?

É manifesto que a opção americana nesta guerra – auxiliando  os que querem derrubar Assad – deriva mais de concepções geoestratégicas sobre a correlação de forças que se pretende ver vitoriosa no Médio Oriente do que da defesa da democracia. O que Washington pretende é um Médio Oriente em que os países do Golfo, fornecedores de petróleo e aliados dóceis dos ocidentais – a quem compram milhões de milhões de dólares em armamento –  continuem a ser dominantes, contendo as ambições nacionalistas do Irão e da Síria.

Já com um pé na Síria, onde desfruta de uma base aérea e de acesso marítimo crucial para a sua frota no Mediterrâneo, por via dos acordos anteriores com o regime alauita, a Rússia preferiu jogar pelo seguro, apoiando financeira e militarmente Damasco.

A vitória obtida agora em Alepo, com a recaptura da cidade pelo exército sírio, estimula certamente Moscovo a prosseguir nessa via, desafiando assim os interesses americanos na região.

Reacção de Washington

Para Washington, pelo contrário, a retomada de Alepo por Assad foi sentida como uma derrota quase humilhante.

Certamente não por acaso, os liberais americanos recuperaram agora as acusações de interferência de Moscovo nas eleições dos EUA supostamente para favorecerem Trump em detrimento de Hillary. Nos media, pelo menos, o sentimento anti-russo atinge níveis só comparáveis aos piores anos da Guerra Fria.

Com isso, dá-se vazão à fúria pelo fracasso da política de Obama na Síria e ao mesmo tempo cria-se um clima tendente a dificultar ao máximo qualquer viragem na relação com a Rússia que o novo presidente possa – como já indicou – querer empreender.

Melhor seria, no entanto, que se retirassem do desastre da Síria – que se segue aos do Iraque, Afeganistão e Líbia – a lição que se impõe: as políticas neoconservadoras de caos criativo e “regime change” foram um completo fracasso, só se traduzindo em devastação e morte, com prejuízo evidente para as populações dos países envolvidos e consequências negativas para a velha Europa, onde vêm agora embater ondas sem precedentes de refugiados em fuga dos cenários de guerra que supostamente seriam o preço a pagar para democratizar os países árabes.

Está mais do que na hora de rever essa estratégia e essa grande mentira. Sob pena de se obterem resultados diametralmente opostos aos pretendidos – consolidação de regimes ditatoriais e reforço das posições da Rússia no Médio Oriente.

 

Por Carlos Fino
Jornalista português, nascido em Lisboa, em 1948. Correspondente da RTP – televisão pública portuguesa – em Moscou, Bruxelas e Washington, destacou-se como correspondente de guerra, em conflitos armados na ex-URSS, Afeganistão, Oriente Médio e Iraque. O primeiro repórter a anunciar, com imagens ao vivo, o bombardeio de Bagdad pelas tropas norte-americanas na Guerra do Golfo (2003). Foi conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal em Brasília (2004/2012). Escreve semanalmente para o Jornal Mundo Lusíada.

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