A guerra fiscal e a Constituição Federal

Retirar dos estados o direito de opor-se a incentivos fiscais de ICMS concedidos por outra unidade da Federação que lhe prejudiquem diretamente é abolir o verdadeiro pacto federativo. Os incisos IV, V e VI do § 2º do artigo 155 da Constituição Federal outorgam ao senado e aos estados um regime jurídico para determinação das alíquotas internas, interestaduais e de exportação do ICMS e determinam o quórum necessário para tanto: maioria absoluta (ou seja, 2/3) nas votações realizadas pelo senado e unanimidade naquelas orquestradas pelos estados e pelo Distrito Federal.

Entendo, pois, que a unanimidade para aprovação de incentivos fiscais no âmbito do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) é imposição constitucional e não decorrência de legislação subordinada à Lei Suprema. A meu ver, a questão é, na verdade, cláusula pétrea da Carta Magna, imodificável por força do inciso I do § 4º do artigo 60 da Constituição Federal: “§ 4º — Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I – a forma federativa de Estado”.

A própria Constituição nem outras leis podem, portanto, criar condições que retirem das entidades federativas o direito a manter sua autonomia política, financeira ou administrativa. É que, dessa forma, o sistema federativo poderia restar modificado e sensivelmente desfigurado, passando a ser apenas formalmente federativo.

Ora, na autonomia financeira dos estados, é o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS) a grande fonte de receita. Ocorre que a estadualização desse tributo implica a existência de regras na Lei Suprema destinadas a evitar que os estados sejam privados do direito de dirigir suas políticas regionais ou que sejam pressionados a conceder benefícios por autênticos “leilões”, provocados por investidores que escolhem o local de sua instalação em função de benefícios que este ou aquele estado ofereça.

Tal fato representa, a rigor, que a verdadeira política financeira não é definida pelos governos, mas exclusivamente pelos investidores. O que, muitas vezes, gera descompetitividade para o próprio estado, já que os estabelecimentos lá fixados há longo tempo não poderão se beneficiar dos novos estímulos.

É exatamente esse tipo de “leilão” que a Suprema Corte atalhou recentemente, exigindo que para a concessão de estímulos no âmbito do ICMS haja unanimidade autorizativa dos 26 estados e do Distrito Federal. Uma clara sinalização de que agir de forma contrária, além de ferir diretamente a Constituição, feriria, também, o sistema federativo do Estado brasileiro.

Se um estado sofre, na Federação, desfiguração tributária devido à sistemática não cumulativa do ICMS, sendo obrigado a reconhecer créditos presumidos, mas inexistentes, concedidos por outras unidades federativas sem a sua concordância, as empresas em seu território tornam-se descompetitivas e sem condições concorrenciais, dada a invasão de produtos estimulados, à margem do consenso unânime. Nitidamente, o pacto federativo torna-se uma farsa, e a Federação, um sistema debilitado, restando a tríplice autonomia (política, administrativa e financeira) seriamente maculada.

É que, sem autonomia financeira, a autonomia política fica reduzida e a administrativa, limitada. Dessa forma, a Federação, fragilizada, manter-se-ia apenas por força de um formalismo legal e não de uma autêntica realidade.

Por essa razão, entendo que a expressão “abolir” do inciso I do § 4º do artigo 60 da Constituição Federal deve ser entendida como abrangendo todas as situações em que o verdadeiro sistema federativo é fragilizado por atos que ponham em xeque a tríplice autonomia de que gozam as unidades federativas.

A unanimidade exigida para a concessão de incentivos, estímulos ou benefícios fiscais de todos os estados e do Distrito Federal é, a meu ver, cláusula pétrea constitucional, não podendo ser alterada nem por legislação inferior nem por emenda constitucional.

 

Dr.Ives Gandra Martins
Professor Emérito das Universidades Mackenzie, UNIFMU, UNIFIEO, UNIP e das Escolas de Comando e Estado Maior do Exército-ECEME e Superior de Serra-ESG, Presidente do Conselho Superior de Direito da Fecomercio e do Centro de Extensão Universitária – CEU – [email protected] e escreve quinzenalmente para o Jornal Mundo Lusíada.

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