A era da instabilidade

 

Por Carlos Fino

A queda do muro de Berlim, em 1989, gerou uma onda de esperança em todo mundo. Com o fim do confronto Leste-Oeste, acreditava-se que se iria abrir uma época de maior cooperação internacional, aplicando os recursos até aí gastos em despesas militares numa série de projetos conjuntos centrados na resolução dos problemas mais graves da Humanidade – fome, doenças, aproveitamento dos recursos naturais e defesa do meio ambiente… Tudo isso, ao mesmo tempo que a democracia se iria expandindo, abrangendo número cada vez maior de países.

Foi então que Fukuyama chegou a falar do “fim da história”, uma vez que a adesão ao modelo democrático e liberal abaria por eliminar progressivamente os maiores conflitos, abrindo-se uma era de paz internacional.

Infelizmente, essa esperança não se concretizou. E assistimos, hoje, pelo contrário, não só à multiplicação dos confrontos, como à emergência de novas ameaças, como o terrorismo – da Al Qaeda ao Estados Islâmico, passando pelos diferentes terrorismo de Estado – e até de novas pragas, como antes o Ebola e agora o Zica. A multiplicação das guerras e conflitos deu aliás origem a um fluxo de  deslocados de uma amplitude nunca antes vista – 60 milhões de pessoas, segundo o ACNUR, a Agência das Nações Unidas para os Refugiados.

Atravessamos literalmente um tempo de grande instabilidade, em que até os maiores pólos de enquadramento e ordem do sistema internacional parecem titubear.

Nos Estados Unidos, a possibilidade de virmos a ter um presidente populista é um mais um sintoma preocupante. Na Europa, a UE atravessa um dos momentos mais conturbados, a ponto de muitos já admitirem hoje o seu possível colapso. Há dias, o primeiro ministro da Eslováquia, Robert Fico, falava mesmo de “suicídio ritual”.

União Europeia em transe

Duas crises de intensidade  e profundidade sem precedentes ameaçam, com efeito, a própria existência da União Europeia – primeiro, desde 2008, na sequência da chamada crise das dívidas soberanas, a crise do euro; e agora, de há um ano para cá, a crise dos refugiados.

No caso da moeda única, embora com grande dificuldade e ao arrepio dos próprios Tratados, foi possível ao BCE/Banco Central Europeu aplicar algumas medidas que remediaram provisoriamente a situação, contendo a especulação dos mercados e abrindo espaço para negociações com vista a reformas de maior alcance ainda por definir.

Quanto aos refugiados, nem essa contenção temporária foi possível alcançar. A crise – em boa parte gerada pelos conflitos em que a Europa se deixou envolver no Médio Oriente e no Magrebe – prolonga-se há mais de um ano sem fim à vista e sem que os europeus consigam chegar a acordo sobre a melhor forma de resolver o problema.

Os esforços para encontrar uma solução têm sido descoordenados, erráticos e patéticos, com a UE a dar de si mesma uma imagem de desorganização e desorientação, agravada pelo não cumprimento da legislação internacional – designadamente as Convenções de Genebra sobre refugiados – de que todos os seus membros são signatários.

Primeiro, a chanceler Angela Merkel abriu as portas da Alemanha, para depois, pressionada pelos próprios aliados no governo, as tentar fechar.

Depois, a UE disse aceitar 160.000 refugiados, número irrisório quando comparado com o volume já atingido pelo fluxo migratório – para cima de um milhão de pessoas no final do ano.

E quando se tentou definir quotas e distribuir esse (diminuto) esforço, a aplicação foi quase nula, com vários países não só a resistirem como até a erguerem muros e barreiras, pondo em causa o chamado sistema Shengen de livre circulação, um dos pilares da integração europeia.

Concebeu-se em seguida um plano de pagamento à Turquia – três mil milhões de euros – em troca de Ankara conter a passagem de refugiados rumo à Grécia. Mas ainda não há acordo sobre como realizar esse esforço financeiro.

Agora, a Alemanha pressiona Bruxelas para apresentar nas próximas semanas um projeto de reforço das fronteiras comuns e uma revisão das regras de entrada, com quotas automáticas de distribuição dos refugiados por diferentes países, para evitar a concentração que até ao momento incide sobre alguns mais desenvolvidos – a própria Alemanha, a Áustria e   a Suécia.

Contra estes planos erguem-se, porém, numerosas vozes, tanto a leste como a oeste, considerando muitas capitais não estarem em condições de absorver vasto número de refugiados de etnias e crenças diferentes, receando um verdadeiro “choque de civilizações”. Mesmo alguns, como a Suécia, que já tinham deixado entrar numerosos refugiados, preparam-se agora para expulsar boa parte deles.

Processo de integração em causa

O processo de integração europeia quase sempre ocorreu, é certo, na sequência de crises. Mas desta vez parece ser diferente. Não só – depois do alargamento a Leste –  o número de Estados é muito maior do que no passado como – e sobretudo – nalguns deles já governam forças eurocépticas. O ressurgimento dos nacionalismos, motivado primeiro pela crise económica, pode agora acentuar-se com a questão dos refugiados. Forçar muito soluções conjuntas em área tão delicada como a de integrar populações de etnia, religião e cultura diferentes, quando essa não é a vontade dos Estados, pode ter efeitos contra-producentes.

Assim, sem solução à vista, cada dia que passa agravam-se os desentendimentos entre os países europeus, ao mesmo tempo que se eleva tragicamente o custo humano do êxodo desordenado de proporções bíblicas a que vimos assistindo, com populações inteiras fugindo das zonas de guerra e procurando acolhimento na Europa.

No passado sábado, morreram em mais um naufrágio no mar Egeu pelo menos 33 pessoas, uma dezena das quais crianças. O barco, cheio de refugiados, vinha do litoral da Turquia e dirigia-se à ilha grega de Lesbos, por onde tem entrado o maior fluxo rumo ao velho continente.

No total, segundo dados da ONU, desde que o êxodo começou, já faleceram ou desapareceram em naufrágios no Mediterrâneo para cima de 3600 pessoas.

E o êxodo não dá sinais de abrandar. Só em janeiro chegaram à Europa através do Mediterrâneo mais 54.500 refugiados, dos quais 50.600 através do litoral da Grécia.

Se a tudo isto acrescentarmos o projetado referendo sobre a continuação ou não da Grã-Bretanha na União Europeia, o instável acordo com a Rússia sobre a Ucrânia e o continuado clima de confronto com Moscovo com o alargamento da Nato aos países de leste,  teremos uma noção dos riscos acrescidos que hoje se vivem na Europa – incluindo, segundo alguns analistas, de confronto militar.

Não espanta por isso que o documento que lança a próxima Conferência de Segurança de Munique – um dos raros fóruns de diálogo leste-oeste que ainda subsistem , apesar das sanções – fale de que podemos estar a assistir ao “início uma era internacional mais instável”.

 

Por Carlos Fino
Jornalista português, nascido em Lisboa, em 1948. Correspondente da RTP – televisão pública portuguesa – em Moscou, Bruxelas e Washington, destacou-se como correspondente de guerra, em conflitos armados na ex-URSS, Afeganistão, Oriente Médio e Iraque. O primeiro repórter a anunciar, com imagens ao vivo, o bombardeio de Bagdad pelas tropas norte-americanas na Guerra do Golfo (2003). Foi conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal em Brasília (2004/2012). Escreve semanalmente para o Jornal Mundo Lusíada.

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