Quando dos trabalhos constituintes e na preparação dos Comentários à Constituição, com meu saudoso colega Celso Bastos, tive a oportunidade não só de participar de audiências públicas, como discutir com numerosos constituintes a necessidade de independência dos Poderes, com autonomia assegurada para suas funções.
Em palestras, programas de televisão e rádio, artigos para jornais, estudos doutrinários e, principalmente, nos contatos com Ulisses Guimarães e Bernardo Cabral, foi-se conformando minha opinião sobre o novo modelo de lei maior e o perfil dos três Poderes.
De rigor, por ter sido a Lei Suprema preparada para um sistema parlamentar de governo, o equilíbrio entre os poderes tornou-se, por determinação da Lei Suprema, o mais bem conformado de todas as sete Constituições da história brasileira (1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967 e 1988).
Estas autonomia e independência asseguradas pelo artigo 2º, foram respeitadas pelo Pretório Excelso durante vários anos, até a rápida modificação de sua composição, em poucos meses. Está o referido artigo assim redigido: “Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.
A partir de 2003, com os presidentes do PT, chegaram à Suprema Corte inúmeros Ministros, hoje, oito magistrados por eles indicados.
Normalmente, a Suprema Corte não sofrera –desde que lá sustentei pela primeira vez, em 1962— mudanças bruscas, de tal maneira que qualquer novo integrante adaptava-se rapidamente ao espírito próprio do Colegiado prestigiando sua jurisprudência. Dizia-se, então, que a Justiça fazia-se nas instâncias inferiores, cabendo ao Pretório Excelso dar estabilidades às instituições.
Por esta razão, sempre foi uma Corte de legisladores negativos, ou seja, voltada a não dar curso às leis inconstitucionais, respeitando os poderes políticos em sua função legislativa. De resto, foi o que ficou definido no § 2º, do artigo 103, da Lei Suprema, tanto que, nas ações diretas de inconstitucionalidade por omissão, quando o Congresso omite-se INCONSTITUCIONALMENTE, não pode a Suprema Corte legislar, mas apenas solicitar ao Poder Legislativo para que produza a norma. Tem este dispositivo a seguinte dicção: “§ 2º Declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias”.
A rápida mudança, todavia, de sua composição, de um lado, e de outro, a introdução da TV Justiça, que permitiu o acesso às discussões nos Tribunais a círculos não jurídicos, tornou o STF um protagonista além das suas próprias fronteiras, passando de legislador negativo para positivo. Assim, legislou sobre fidelidade partidária, eleição de candidatos derrotados para substituir governadores afastados, alargamento de hipóteses de união estável para pares do mesmo sexo, instituição da impunidade para o aborto eugênico, culpabilidade sem trânsito em julgado, com encarceramento nas ações penais antes da decisão final (art. 5º, inciso LVII), assunção de funções exclusivas do Legislativo para afastamento de parlamentares, definição de regimentos internos do Legislativo, quando o seu próprio Regimento Interno é intocável, além de outras intervenções normativas de menor impacto.
Tenho, reiteradamente, declarado admiração aos onze Ministros da Suprema Corte, mas, nem por isto, muito mais velho que eles, sinto-me confortável em vê-los, poder técnico que são, transformarem-se em poder político.
Creio que este protagonismo crescente resulta em insegurança jurídica e, ao invés de ser, como era no passado, uma Corte que garantia a estabilidade das instituições –por mais que sua intenção seja esta— termina por trazer um nível de instabilidade maior, visto que contra a lei inconstitucional pode-se recorrer ao Judiciário, mas contra a invasão de competências não há a quem recorrer.
Creio que valeria a pena a reflexão, não só por parte dos eminentes juristas que compõem a Máxima Instância, mas também de professores, doutrinadores e operadores de Direito, sobre se o momento não é de retornar-se a efetiva autonomia e independência dos Poderes, nenhum deles invadindo seara alheia, valorizando-se, desta forma, o artigo 2º da Lei Suprema.
Para mim, o Supremo não é um “legislador constituinte”, mas, pelo artigo 102, da Lei Maior, exclusivamente GUARDIÃO da Carta da República, cujo texto expressado está nestes termos: “Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: ….”. É por esta razão que entendo que a democracia brasileira, que se lastreia, no equilíbrio de poderes não pode ter a prevalência de um poder sobre os outros, risco de um excessivo protagonismo judicial colocá-la em risco. No passado, o Poder Executivo prevalecia sobre os outros poderes, com distorções inequívocas. É fundamental que a Suprema Corte, de eminentes mestres do Direito, volte a ser o que sempre foi no passado, ou seja: o sustentáculo dos outros poderes, mas não um poder deles substituto.
Dr. Ives Gandra Martins
Professor Emérito das Universidades Mackenzie, UNIFMU, UNIFIEO, UNIP e das Escolas de Comando e Estado Maior do Exército-ECEME e Superior de Serra-ESG, Presidente do Conselho Superior de Direito da Fecomercio e do Centro de Extensão Universitária – CEU – [email protected] e escreve quinzenalmente para o Jornal Mundo Lusíada.