Hidroavião de Sacadura Cabral e Gago Coutinho é único no mundo e está em Lisboa

Mundo Lusíada com Lusa

Um dos hidroaviões que há quase 100 anos transportaram Sacadura Cabral e Gago Coutinho na primeira Travessia Aérea do Atlântico Sul está exposto no Museu da Marinha, em Lisboa, e é o único aparelho original no mundo.

O secretário da associação Lusitânia100, criada para invocar a travessia, que celebra 100 anos em 2022, explicou que o sobrevivente “Santa Cruz” foi a terceira aeronave a ser utilizada por Sacadura Cabral (piloto) e Gago Coutinho (navegador).

Jorge Lima Basto, engenheiro aeronáutico, ressalva as principais características deste hidroavião, “todo construído em madeira e forrado a tela”, de um modelo (Fairey III) que era, na época, muito comum na aviação naval portuguesa, por serem leves e se adaptarem bastantes à aviação naval.

Neste hidroavião exposto no Museu da Marinha, após ter sido objeto de uma reparação, saltam à vista as pequenas dimensões da cabine de pilotagem.

“Eles tinham muito pouco espaço para se movimentar, o que também é incrível, como é que [conseguiram estar] tantas horas naquela posição, tanto o piloto (Sacadura Cabral), para fazer a pilotagem, como Gago Coutinho, para fazer as medições astronômicas. Era um espaço muito limitado”, afirmou Jorge Lima Basto.

Para esta viagem, Sacadura Cabral escolheu um motor Rolls-Royce Eagle, porque achava que era o mais eficiente. O avião tinha 350 cavalos e era, na altura “o mais adequado”.

Segundo Jorge Lima Basto, a velocidade atingida era na ordem dos 150 quilômetros por hora e a uma altitude máxima de 300, 400 metros.

A autonomia em termos de combustível foi suficiente para as etapas, sendo que o percurso mais longo do percurso, o “grande salto” (Cabo Verde – Brasil), durou 11 horas e meia e terminou sem grande combustível no depósito.

Jorge Lima Basto, que se assume um apaixonado pela aviação, desde criança, foi responsável pela construção da réplica do Fairey III D (“Santa Cruz”), que se encontra no Museu do Ar, em Alverca, quando se comemoraram os 50 anos da travessia (1972).

Profundo conhecedor desta travessia e dos três aviões que a tornaram possível – “Lusitânia”, “Portugal” e “Santa Cruz” – não esconde a admiração por Sacadura Cabral e Gago Coutinho: “Eram dois homens extraordinários, a capacidade de ambos, cada um na sua área. Coutinho sempre foi ligado a uma parte da navegação. Sacadura esteve sempre mais ligado à aeronáutica, foi diretor da aeronáutica, foi dos primeiros pilotos da aviação portuguesa, foi instrutor do primeiro curso de pilotagem em Portugal (1916) e é a sua evolução sempre esteve ligado aos aviões.

“Com a ligação entre os dois, conseguiram fazer esta viagem e com sucesso”, prosseguiu.

O relatório desta primeira travessia está inscrito pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência (Unesco) no Registro da Memória do Mundo, estando classificado como Patrimônio da Humanidade.

Centenário da Travessia

Um grupo de apaixonados pela aviação e gratos a Sacadura Cabral e Gago Coutinho pela primeira Travessia Aérea do Atlântico Sul vai aproveitar o centenário para o divulgar pelo mundo e promover o seu estudo nas escolas.

A primeira Travessia Aérea do Atlântico Sul (TAAS) começou às 06:45 de 30 de março de 1922, a partir da rampa do Centro de Aviação Naval, na Doca do Bom Sucesso, em Lisboa.

Os dois aventureiros, que já tinham trabalhado juntos em África, destacando-se no seu trabalho que perdura até hoje, utilizaram três aviões e pararam em Las Palmas (Canárias) e São Vicente (Cabo Verde), antes de atingirem o Brasil no chamado “grande salto” que durou 11 horas e 21 minutos.

Ao todo, Sacadura Cabral (piloto) e Gago Coutinho (navegador) percorreram 4.527 milhas náuticas (8.484 quilômetros), em 62 horas e 26 minutos.

“Além da navegação astronômica de precisão, muito mais importante do que isso é a questão do sonho. Foi um sonho de Sacadura Cabral, que só foi possível com o apoio técnico e inquestionável de Gago Coutinho”, disse o presidente da associação Lusitânia100.

O líder deste grupo, com o nome do primeiro hidroavião (“Lusitânia”) que descolou frente à Torre de Belém, e a referência ao centenário que se assinala em 2022, considera que a grandiosidade do feito não é devidamente reconhecida em Portugal, o que impede a sua divulgação a nível internacional.

A associação quer contribuir para preencher esse vazio e desde que foi criada, há nove anos, que trabalha na elaboração de um ambicioso programa que tem como objetivo invocar esta primeira travessia como um feito de desenvolvimento tecnológico e de união entre os povos.

Frente ao Santa Cruz, o último hidroavião utilizado nesta viagem e que está visitável no Museu da Marinha, em Lisboa, João Moura Ferreira não esconde o entusiasmo ao falar destes dois pioneiros que atingiram o seu sonho graças à confiança que depositaram um no outro.

“A cumplicidade pessoal entre eles, a absoluta confiança, o trabalho de equipe que eles tiveram, a confiança que tinham nas decisões tomadas são um exemplo para toda a gente, em qualquer época e em qualquer lugar do mundo”, contou.

A estes predicados, juntou-se a sabedoria, principalmente a adquirida durante décadas a desenhar as fronteiras em África e o conhecimento dos instrumentos, como o sextante de horizonte artificial criado por Gago Coutinho.

Para o sucesso do feito contribuiu também o treino que a dureza das condições a que o seu trabalho em África os obrigara, nomeadamente de acomodamento na selva.

Nos aviões que usaram, dispunham de duas cabinas abertas em que estavam literalmente encaixados parcialmente, sem capacidade de mobilidade.

O feito aconteceu no ano em que se comemorava o centenário da independência do Brasil e durante décadas fez parte da matéria escolar, o que atualmente praticamente não acontece, uma situação que a associação pretende alterar.

“Todos nós [gerações com mais idade] ouvimos falar do feito. Depois disso, saiu dos programas da História em Portugal”, lamentou.

E prosseguiu: “Hoje em dia dá-se muito pouca visibilidade a esses feitos, dá-se muito pouca visibilidade aos trabalhos que foram feitos em África e que ficaram como herança científica e nacional. Gostaria que se desse um pouco mais de atenção, mas naturalmente os programas não dependem de nós.

Ainda assim, a associação disponibiliza na sua página da internet “um repositório de dados culturais e científicos para quem quiser ver e aprofundar melhor, o qual tem claramente como destinatários os jovens e os professores das escolas”.

Segundo João Moura Ferreira, engenheiro eletrotécnico de formação, são várias as disciplinas em que esta viagem poderá ser abordada, particularmente geografia e matemática, “muita matemática”.

Eles só ficaram vivos porque “acreditaram na matemática e confiaram na matemática. Se não fosse isso, tinham-se perdido e tinham desaparecido sem deixar qualquer rastro”, indicou.

E lembrou o “extraordinário” que a viagem foi numa altura em que “ninguém se atrevia a atravessar o Atlântico e ir aterrar numa pequena ilha”, pois todas as travessias tinham sido feitas tinham sido contra um continente ou uma ilha do tamanho da Irlanda”.

Para João Moura Ferreira, uma das razões para o feito não ser mais conhecido a nível internacional – embora seja considerado um acontecimento científico e humano tremendos – é a pouca divulgação do único relatório da travessia, que foi editado em inglês há 49 anos.

O documento “Relatórios da primeira Travessia Aérea do Atlântico Sul” foi inscrito na UNESCO, e tem à venda na loja do Museu da Marinha, em Lisboa, mas a associação vai fazer uma reedição em português e inglês, ainda este ano.

No âmbito das celebrações deste centenário, a Lustitânia100 está a organizar um repositório de dados culturais e científicos sobre a travessia.

Sempre com o objetivo de preservar a memória, a associação gostaria de contribuir para o fortalecimento dos “laços internacionais, nomeadamente nos países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) e em toda a comunidade portuguesa” através da divulgação desta travessia que será assinalada em Portugal, Cabo Verde e Brasil.

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