Brasil assinala, mas não celebra Dia Mundial da Língua Portuguesa

Por Carlos Fino

Se não ignorou por completo, o Brasil também não celebrou o primeiro Dia Mundial da Língua Portuguesa. Certamente não com o relevo que o acontecimento merecia e seria de esperar por parte do país de que a projeção internacional da língua é grandemente tributária.
O Museu da Língua Portuguesa de São Paulo organizou uma sessão virtual via internet. Mas, de resto, pouca coisa: uma ou outra referência esporádica na rádio e/ou canal de TV, um ou outro artigo aqui e ali, numa página interior deste ou daquele jornal e pouco mais. Nem declarações oficiais, nem matérias de destaque nos principais órgãos de comunicação, nem qualquer reflexão ou entrevista de fundo com escritores ou outros intelectuais sobre a problemática e o futuro do idioma: se não ignorou por completo, o Brasil também não celebrou o primeiro Dia Mundial da Língua Portuguesa. Certamente não com o relevo que o acontecimento merecia e seria de esperar por parte do país de que a projeção internacional da língua é grandemente tributária.
Vivemos assim o paradoxo de assistir ao distraído alheamento do Brasil em relação a uma questão que não pode deixar de estar no centro das suas preocupações enquanto potência emergente e cuja projeção externa desfruta à partida da enorme vantagem que é ter o seu próprio idioma falado em diversos continentes.
A agitação política que o país atravessa, a par das preocupações crescentes com a pandemia, podem em parte explicar a escassíssima atenção que as elites brasileiras dedicaram à efeméride. Mas não justificam tudo nem explicam o essencial. O essencial é mais profundo e é de ordem histórica, política e psicológica: a permanente dificuldade com que o Brasil se debate, há já 200 anos, para fixar a sua própria identidade nacional, atravessada que é por diferentes e contraditórias correntes em que o papel reservado à herança lusa é questionado em permanência, quando não inteira e ferozmente rejeitado.
Lusofobia versus lusofilia
O momento inicial dessa contraposição é o da ruptura, em 1822, quando, por razões políticas, os portugueses do Brasil fazem do antilusitanismo o cerne da nova nacionalidade que era preciso construir depois de alcançada a independência. É quando nas Cortes liberais de 1820 – constatada a impossibilidade de entendimento – Fernandes Tomás lança o seu famoso “Adeus Senhor Brasil!” e do Brasil D. Pedro escreve ao pai: “De Portugal nada queremos – nada!”
Apesar disso, enquanto a monarquia durou e os conservadores estiveram no poder, ainda houve um olhar positivo em relação ao passado colonial português (Varnhagen). Mas logo aí os liberais passaram a considerar esse passado uma herança maligna que seria necessário superar. Entre lusofilia e lusofobia, sempre presentes, será a segunda que acabará por prevalecer, num movimento que se intensifica a partir da República (1889), quando os jacobinos, então prevalecentes, conduzem campanhas de ódio contra os portugueses, chegando Antônio Torres, em Razões da Inconfidência, a escrever que “o portuguez é o mais ferrenho e o mais perigoso inimigo do Brasil”!
Nos anos 50 do século passado, a herança lusa passa a ser denegrida ou no mínimo sistematicamente criticada ou até rasurada, num incessante parricídio em que o Brasil se assume como filho de si mesmo
A rejeição da herança lusa consolidou-se no plano simbólico, já no começo do século XX, com a Semana de Arte Moderna de São Paulo (1922), em que pela primeira vez o Brasil mental se propôs construir a imagem de si próprio sem referência a Portugal. Em carta a Manuel Bandeira, Mário de Andrade – autor de Macunaíma, em que exalta o folclore dos índios e em parte também dos negros – confessa que o objetivo já nem era combater Portugal. O objetivo, agora, era esquecê-lo (Moraes, 2000). Desde então, toda uma série de “intérpretes do Brasil” – sociólogos, historiadores e literatos de um modo geral (Manoel Bomfim, Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Paulo Prado, Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda…) – irá aprofundar o distanciamento, designando o passado lusitano como a raiz de todos os males da nova nação.
Nos anos 1930, a lusofilia chega a recuperar fôlego graças aos esforços da Comunidade Portuguesa e sobretudo com a obra de Gilberto Freire, que, n’O Mundo que o Português Criou e em Casa-Grande e Senzala (1933), ao destacar o valor da mestiçagem (contra as teorias racialistas da época) e ao acentuar a plasticidade da alma lusa como particularmente adequada à vida nos trópicos, reinstalou a herança portuguesa no centro da construção identitária do Brasil: “(…) o certo é que os portugueses triunfaram onde outros europeus falharam: de formação portuguesa é a primeira sociedade moderna constituída nos trópicos com características nacionais e qualidade de permanência” (Freyre, 2004, p. 73).
O próprio Sérgio Buarque de Holanda, que apontava o corte com as raízes ibéricas como condição de progresso do Brasil, acabou por reconhecer que, apesar do “contato e mistura com raças indígenas ou adventícias”, a cultura brasileira não se fez tão diferente dos “nossos avós de além-mar” como muitas vezes “gostaríamos de sê-lo”, acentuando: “No caso brasileiro, a verdade, por menos sedutora que possa parecer a alguns dos nossos compatriotas [ele próprio?], é que ainda nos associa à Península Ibérica, a Portugal especialmente, uma tradição longa e viva, bastante viva para nutrir, até hoje, uma alma comum, a despeito de tudo quanto nos separa” (Holanda, 2000).
Marxismo aprofunda distanciamento
“Alma comum” não é pouca coisa. Mas, nos anos 50 do século passado – retomando uma senda aberta já nos anos 30 pelo marxista Caio Prado Júnior com o seu Evolução Política do Brasil –, iniciou-se uma nova fase da vida intelectual brasileira apoiada em diversas versões e aproximações ao marxismo, na qual a sociologia e a economia irão fornecer as bases ideológicas para um novo nacionalismo, que acabará por varrer para segundo plano essa narrativa mais conciliatória para com a herança cultural portuguesa (Zarur, 2005, p. 36). Em vez de apreciada e valorizada, a herança lusa passa a ser denegrida ou no mínimo sistematicamente criticada ou até rasurada, num incessante parricídio em que o Brasil se assume como filho de si mesmo (Lourenço, 2004, p. 36).
O antilusitanismo está tão entranhado que chega a haver autêntico desdém pelas coisas portuguesas, como reconheceu Marcelo Coelho, articulista e membro do conselho editorial do jornal Folha de S. Paulo, um dos mais importantes do país, quando, em 1999, escreveu o seguinte sobre o lançamento de Mitologia da Saudade, primeiro livro de Eduardo Lourenço publicado no Brasil: “Um livro sobre a saudade, escrito por um intelectual português, tem tudo para provocar reações alérgicas no público brasileiro. Não há coisa a que sejamos mais refratários do que à cultura portuguesa. Para nós, é quase uma contradição nos próprios termos. Fernando Pessoa e José Saramago só passaram por nossa alfândega porque recalcámos a lusitanidade deles (…). Tomamos posse virtual desses dois grandes escritores portugueses, portanto, sem abandonar nossa estranheza, nosso desdém, pela lusitanidade.”
De então para cá, apesar dos avanços em termos económicos e comerciais, apesar da intensificação dos contatos bilaterais a vários níveis e dos fluxos migratórios recíprocos, esse estado de espírito profundo, essa atitude de estranheza em relação a Portugal – que, de tão entranhada e naturalizada por via do ensino (de onde os jovens saem com uma péssima ideia de Portugal) e dos media, já se tornou praticamente inconsciente –, não mudou.
E é ela que justamente melhor explica a forma aparentemente distraída do Brasil em relação a um dia mundial que celebra a sua própria língua. Como se o país só a contragosto falasse o português, de tanto considerar, por exemplo – é uma das “teses” mais difundidas sobre o assunto – que o facto de a língua de Camões se ter tornado o idioma do Brasil apenas teria resultado de um ato de força do Marquês de Pombal…
Por isso, no plano da ação cultural externa e no âmbito dos deveres que lhe cabem em termos de defesa e projeção da língua e da cultura nacionais, o Estado português deveria olhar mais para o Brasil, apostando seriamente numa área crucial que até agora tem estado esquecida ou descurada – os media –, tantas vezes preteridos por celebrações fugazes e efémeras, que não vão fundo nem deixam lastro.

Referências
Moraes, M. A. (2000), Correspondência: Mário de Andrade e Manuel Bandeira. São Paulo: Editora da USP
Freyre, G. (2004), Casa Grande e Senzala. São Paulo: Global
Holanda, S. B. (2000), Raízes do Brasil. In Intérpretes do Brasil, vol. 3. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar
Zarur, Z. (2005), A utopia brasileira: etnia e construção da nação no pensamento social brasileiro.
Lourenço, E. (2004), A Nau de Ícaro seguido de Imagem e miragem da lusofonia – nós e o Brasil: ressentimento e delírio. Lisboa: Gradiva

 

Por Carlos Fino
Jornalista, doutorado em Comunicação pela Universidade do Minho. Foi conselheiro de imprensa na Embaixada de Portugal no Brasil (2004-2012)

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