BRASIL: A Esquerda mereceu perder

Por Carlos Fino

Aquilo que há ainda poucos meses parecia impossível tornou-se realidade – Jair Bolsonaro é o novo presidente eleito do Brasil. Capitão do Exército na reforma, com folha de serviços controversa, deputado sem expressão há dezenas de anos, homem do baixo clero antes pouco considerado entre os próprios pares, Bolsonaro conseguiu, com meia dúzia de frases rasas, em que perpassa intolerância social e política, polarizar uma onda de apoio que agora o guindou à chefia do Estado.

O que se passou para que o Brasil esteja assim vulnerável e possa vir a perder a graça?

O intenso ódio ao PT de Lula da Silva gerado pela corrupção em larga escala desvelada pela Lava Jato é, certamente, uma primeira resposta.

Não foi o PT que inaugurou a corrupção política no Brasil – o financiamento ilegal das campanhas tem sido a regra desde sempre; mas o Partido dos Trabalhadores lutara contra isso durante anos e anos e, quando ganhou pela primeira vez, em 2003, recebeu uma missão de mudança ética, que depois traiu.

Na altura, a esperança venceu o medo, mas depois a corrupção derrotou a esperança.

Desde então, o PT perdeu o apoio das classes médias que – com a ajuda dos setores progressistas da Igreja Católica – conseguira angariar e, a partir daí, ficou reduzido à militância. A popularidade remanescente de Lula ainda lhe garante, por enquanto, um terço do eleitorado – mas isso não chega para ganhar uma eleição presidencial.

A própria expressão visual dos seus comícios é significativa: o PT ficou-se praticamente só pelo vermelho, tendo deixado que a Oposição lhe roubasse o verde e o amarelo, cores da bandeira nacional.

Assim reduzidos à sua própria base, recusando-se a fazer qualquer autocrítica, num discurso cada vez mais virado para dentro, desconfiado ou mesmo intolerante para com os próprios potenciais aliados, os petistas não foram capazes de forjar as alianças que seriam necessárias para formar uma frente unida contra o que se desenha como uma perigosa deriva de extrema direita, que já provocou dezenas de agressões um pouco por todo o país e ameaça agora traduzir-se em medidas xenófobas e antidemocráticas.

Pode lamentar-se a pusilanimidade de Fernando Henrique Cardoso, do PSDB, que recusou  uma palavra de apoio, e o mesmo se pode dizer de Ciro Gomes, do PDT, sempre verrinoso e incerto, que no último momento, depois de insinuar um possível apoio a Haddad, acabou por dizer: “com o PT, nunca mais!”. Pode lamentar-se tudo isso, mas a verdade é que o próprio PT é responsável pelo seu isolamento. Basta olhar para a escolha em relação ao vice: se tivesse havido um esforço no sentido do alargamento e do diálogo, o candidato a vice não podia ser, como foi, da extrema esquerda.

Não foram, entretanto, só os erros do PT que conduziram o Brasil à situação atual. Como vem acontecendo um pouco por todo o mundo, também no Brasil há um cansaço do politicamente correto e dos seus exageros; um cansaço em relação a políticas que vão muitas vezes contra convicções profundas das populações sem que estas sejam, primeiro, conquistadas para essas posições. A par, também, de muitas medidas que – invocando direitos legítimos – acabam por traduzir-se em privilégios de grupos.

Tudo isso somado à incapacidade do sistema dar resposta aos anseios de milhões de pessoas que permanecem à margem, enquanto perante elas se desenrola o teatro cínico da política ou dos tribunais, dando sempre prioridade aos interesses instalados.

Mas a vitória que o eleitorado concedeu a Bolsonaro foi relativamente limitada. Expressiva, sem dúvida, mas longe de ser um cheque em branco. Apesar de tudo, mesmo isolado, Haddad conseguiu conter a onda e evitar uma derrota humilhante. Além disso, muitos votos que foram para a direita são mais anti-PT/Lula do que propriamente outra coisa, podendo ser reversíveis. É o caso, por exemplo, dos eleitores do PSDB, que foram na sua maioria para Bolsonaro, mas não são votos de extrema direita.

Agora, resta esperar que o PT e a esquerda de uma forma geral aprendam com a derrota e que o sistema democrático consiga conter os impulsos extremistas que rodeiam o candidato vencedor. Como se sabe, dado que o Diabo não corta as unhas, alguém tem que lhas cortar por ele. A Constituição de 1988 tem os mecanismos adequados capazes de conter qualquer deriva, seja à esquerda ou à direita. Esperemos que sejam devidamente acionados, se for o caso. Essa é a  condição para que o Brasil não perca a graça e a esperança possa renascer.

 

Por Carlos Fino
Jornalista português, nascido em Lisboa, em 1948. Correspondente da RTP – televisão pública portuguesa – em Moscou, Bruxelas e Washington, destacou-se como correspondente de guerra, em conflitos armados na ex-URSS, Afeganistão, Oriente Médio e Iraque. O primeiro repórter a anunciar, com imagens ao vivo, o bombardeio de Bagdad pelas tropas norte-americanas na Guerra do Golfo (2003). Foi conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal em Brasília (2004/2012). Escreve para o Jornal Mundo Lusíada.

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