Por Carlos Fino
A imagem do corpo de Aylan Kurdi, o pequeno sírio de três anos morto em naufrágio no Mediterrâneo, que as ondas depositaram numa praia da Turquia, em Setembro de 2015, ainda está viva na memória de todos.
A comoção foi mundial, contribuindo para chamar à atenção do problema dos refugiados, a chegar em ondas cada vez maiores às fronteiras europeias.
Feita em condições altamente precárias – pequenos barcos superlotados, sem um mínimo de condições de segurança – a travessia do Mediterrâneo já então se tinha tornado uma aventura muito perigosa para os migrantes e um negócio altamente lucrativo para as redes de traficantes que exploram o desespero alheio.
Segundo dados da ACNUR, a agência das Nações Unidas para os refugiados, só nesse ano de 2015, morreram nas diferentes rotas do norte de África para a Europa 3771 pessoas.
De então para cá, alguma coisa mudou, mas não o essencial, nem, infelizmente, para melhor. Em 2016, atingiu-se inclusive um número recorde de mortos em naufrágios de refugiados e migrantes – 4600!
UE IMPREPARADA E DESUNIDA
A União Europeia mostrou-se totalmente impreparada para enfrentar o problema, acabando cada país por decidir sozinho se queria ou não acolher essas pessoas em fuga e em que número.
“A desorganização e o sistema de asilo extremamente disfuncional da Europa contribuíram para agravar a crise dos refugiados”, afirmou o então dirigente da ACNUR, António Guterres, hoje secretário-geral das Nações Unidas.
A Alemanha de Merkel chegou a admitir 500.000 migrantes, dizendo que poderia receber anualmente outros tantos. Mas, pressionada interna e externamente, Berlim acabou por recuar, preferindo tentar coordenar esforços a nível europeu.
Sem grande resultado, já que vários países do centro e leste do continente – casos da Hungria e da Polónia, por exemplo – se opuseram a uma política unificada, opondo-se à entrada dos migrantes e recusando a atribuição de quotas nesta matéria.
Não espanta por isso que dos 160.000 refugiados propostos acolher pela Comissão Europeia, só uma parte tenha sido até agora efetivamente colocada.
MEDIDAS RESTRITIVAS
Perante a pouca vontade de vários dos países membros de abrir as portas ao acolhimento, medidas de carácter restritivo foram entretanto adoptadas.
Primeiro, a Europa fechou a rota dos Balcãs, provocando um refluxo da onda migratória para a Grécia, onde dezenas de milhar de pessoas ainda aguardam uma decisão sobre o seu destino.
Os europeus assinaram também um controverso acordo com a Turquia, pelo qual Ankara, em troca de ajuda financeira – 6 mil milhões de euros – se compromete a estancar o fluxo migratório que passa pelo país e a receber de volta os migrantes que lhe sejam devolvidos.
A partir daí, intensificou-se o tráfico a partir da Líbia, onde depois do derrube de Kadhafi – patrocinado pelos próprios europeus – ainda reina o caos, com dois governos a disputar supremacia.
PIOR CRISE DE SEMPRE
Em termos globais, o problema dos refugiados e migrantes conheceu mesmo, de 2015 para cá, um agravamento.
A ACNUR fala de “pior crise de sempre”, com um total de 65,6 milhões de pessoas deslocadas (40,3 milhões de deslocados internos e 25,3 milhões de refugiados) – o número mais elevado desde a Segunda Guerra Mundial.
Desses, mais de metade são crianças ou jovens com menos de 18 anos, muitos dos quais viajam sozinhos.
E quem mais ajuda é quem menos pode – os países perto das zonas de conflito como a Turquia e a Jordânia (vizinhos da Síria, cuja guerra “produz” o maior número de refugiados) ou o Paquistão (do lado do Afeganistão (outro centro de conflito permanente).
A Alemanha – que desde o início da crise deu asilo a 669.500 pessoas, é o único país desenvolvido que integra, em oitavo lugar, o top 10 dos países de acolhimento.
Este é o grande paradoxo da situação – 84 por cento dos refugiados encontram-se nos países em desenvolvimento, três dos quais – República Democrática do Congo, Etiópia e Uganda – são mesmo os que se encontram registados na ONU como tendo o menor índice de desenvolvimento humano!
HOSTILIDADE CRESCENTE
Vários especialistas argumentam que os refugiados, sendo como são, na sua maioria, gente jovem e empreendedora, podem dar um impulso às economias dos países de acolhimento – contribuindo, além da demografia, para reforçar (e não enfraquecer) os respectivos sistemas fiscais e de segurança social.
Essas considerações não são todavia atendidas por grande parte da opinião pública, que prefere ver nos imigrantes um fator de concorrência no emprego e um perigo em termos culturais, além de poderem veicular apoio ao terrorismo de inspiração islâmica.
Assim, nada, para já – nem os apelos da ONU, nem as orações do Papa, nem os esforços abnegados das organizações não governamentais – parece poder deter o muro de hostilidade ditada pelo egoísmo que entretanto se levantou em vários países contra a corrente migratória.
A imagem de Aylan Kurdi ainda está na memória de todos. Mas em termos de centros decisórios e até de grande público, parece que já poucos comove.
De vários Estados europeus a alguns países africanos e asiáticos, passando pelos EUA, erguem-se novas barreiras e os migrantes são rejeitados como se fossem filhos de um Deus menor.
Tornaram-se afinal, neste início de novo milénio, um índice da nossa (des)humanidade.
Por Carlos Fino
Jornalista português, nascido em Lisboa, em 1948. Correspondente da RTP – televisão pública portuguesa – em Moscou, Bruxelas e Washington, destacou-se como correspondente de guerra, em conflitos armados na ex-URSS, Afeganistão, Oriente Médio e Iraque. O primeiro repórter a anunciar, com imagens ao vivo, o bombardeio de Bagdad pelas tropas norte-americanas na Guerra do Golfo (2003). Foi conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal em Brasília (2004/2012). Escreve semanalmente para o Jornal Mundo Lusíada.