Por Luiz Flávio Gomes
A corrupção é fonte de ganância e de ignorância? Sim. Dos 180 municípios fiscalizados pela Corregedoria Geral da União (entre 2011 e 2012), 73,7% praticaram algum tipo de corrupção ou de desvio no uso dos recursos do Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos Profissionais da Educação) (O Globo de 01.08.13, p. 3). A danosidade da corrupção, nesse caso, tem tudo a ver com a ignorância a que são “condenadas” todas as crianças que recebem a péssima educação ministrada nas escolas públicas (por falta de estrutura adequada, metodologia correta, estímulo ao professor, que nem sequer tem condições de ser professor como profissão etc.). Com isso o aluno(a) não aprende a pensar e sem pensar ele(a) não desenvolve sua cidadania consciente, por falta de emancipação (depois passa o dia todo, inclusive na internet, fazendo mau uso da sua espontânea vulgaridade). O Brasil perde porque não prepara mão de obra adequada para o seu crescimento. Tudo isso se passa nos nossos olhos e nós não estamos fiscalizando o uso das verbas públicas dentro de uma democracia digital vigilante (que precisamos implantar, urgentemente, no Brasil).
O uso da verba pública é fiscalizado? Em grande medida, não. Em 58% dos Conselhos de Acompanhamento do Fundeb (Fundo da Educação) visitados, os conselheiros não tinham recebido qualquer tipo de capacitação. Ou seja: fiscais que não fiscalizam. Conselheiros que não vigiam. Conselhos de fachada. Alguns mecanismos de controle já estão criados na lei (como se vê). Consoante a forma analógica, porém existem. Mas isso, no final, muitas vezes, não passa de um órgão fantasma. A população, na democracia direta, deve ser a primeira a querer fiscalizar o bom emprego da verba pública (é o que queremos que aconteça no Fórum Cidadão, que é a plataforma da democracia digital, que deve ser aprovada o quanto antes pelo legislador). O lado vigilante da democracia direta ainda é incipiente no nosso País. É chegado o momento, depois dos protestos de junho, de repensar e repaginar o Brasil, com o propósito de eliminar das suas entranhas o Brasilquistão que existe dentro dele. Para isso temos que lutar diuturnamente contra seus cinco pilares: (a) ineficientismo do Estado (esse é o lado ruim do Estado); (b) sistema político atrasado e corrupto; (c) dialética da malandragem (Antonio Candido); (d) apartheid (discriminação em razão da divisão de classes) e (d) guerra civil (violência para manter o sistema discriminatório).
Poderíamos traduzir em números a má gestão da verba pública na educação? Sim. Das 180 cidades fiscalizadas entre 2011 e 2012, 73,7% têm problemas de direcionamento e simulação de licitações; 69,3% fizeram gastos incompatíveis com o objetivo do Fundo; 25% fizeram contratos irregulares; 32,2% fizeram movimentação de dinheiro fora da conta específica (O Globo de 01.08.13, p. 3). A Polícia Federal têm feito várias operações nessa área? Sim (operações Alien, Geleira, Tabanga etc.). E o resultado? Pífio, pelo menos em termos de recuperação do dinheiro subtraído. Por quê? Por uma série de fatores, mas, sobretudo, em razão da cultura da malandragem, que é generalizada. Ela faz parte da nossa formação história (disse J. E. Martins Cardozo), que “cria a ambiência para esses atos, sem uma reflexão profunda”. Quando tratamos um assunto sério de forma superficial, é evidente que a solução terá essa mesma natureza.
De onde vem a “dialética da malandragem”? Antonio Candido (Revista do Instituto de estudos brasileiros, n. 8, SP, USP, 1970, p. 67-89) vislumbrou no romance Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida, o que ele chamou de “dialética da malandragem”, que retrataria a dinâmica dos costumes da sociedade brasileira no começo do século XVIII. Leonardo (personagem do livro) seria o “primeiro grande malandro que entra na novelística brasileira” (que, depois, foi elevado à categoria de símbolo sem caráter por Mário de Andrade, no Macunanaíma). O malandro (municipal, estadual ou federal) é um aventureiro, astuto e quase folclórico, ao mesmo tempo, que pratica a astúcia pelo gosto da astúcia, em proveito próprio ou para solucionar um problema, mas sempre lesando terceiros. O que caracteriza fundamentalmente a dialética da malandragem é a díade (o par) da ordem e da desordem, que retrataria não somente a sociedade descrita no livro como a atual (se prestarmos bem atenção). Por todos os lados e em todas as partes há sempre, na dinâmica da ambiência histórica brasileira, uma ordem comunicando-se com a desordem. É o tipo de sociedade que faz o bem e também o mal, o certo e o errado, que é egoísta e também altruísta, que é honesta e desonesta, que faz algo admirável ao lado de atos deploráveis etc. A tese é a seguinte: as díades (os pares) marcariam o caráter da sociedade brasileira (daí a generalização da ordem e também da malandragem, da corrupção).
Trata-se de um mundo pendular entre o lítico e o ilícito? Sim. Se correta a tese dualista da malandragem, deveríamos afirmar que a sociedade brasileira (pelo menos vários segmentos dela) vive zanzando entre dois hemisférios, o positivo (da ordem) e o negativo (da desordem). Voltando a Antonio Candido: a dinâmica do livro citado (Memórias de um sargento de milícias) pressupõe uma gangorra dos dois polos, que transita da ordem estabelecida às condutas transgressivas. “Tutto nel mondo è burla” seria a expressão legítima desse mundo pendular, diáfano, cujas estruturas morais e éticas habitariam um lugar bem distante de toda rigidez. Vive-se ao sabor do balanceio entre ordem e desordem. Trata-se de uma sociedade “na qual poucos trabalham, enquanto outros flutuam ao Deus dará, colhendo as sobras do parasitismo, dos expedientes, das munificiências, da sorte ou do roubo miúdo. Uma organização fissurada pela anomia, onde se transita entre o lícito e o ilícito, sem muitas vezes podermos dizer o que é um e o que é outro, porque todos acabam circulando de um para outro com uma naturalidade que lembra o modo de formação das famílias, dos prestígios, das fortunas, das reputações, no Brasil urbano da primeira metade do século XIX” [e, com certeza, do Brasilquistão atual].
Por Luiz Flávio Gomes
Jurista e coeditor do portal atualidades do direito (www.atualidadesdodireito.com.br).