Mês de Abril. Duas histórias apavorantes. Bairro do Belém, zona leste da cidade. Victor Hugo Deppman, 19 anos, estudante de jornalismo, foi assassinado durante assalto quando voltava a pé para casa após os trabalhos. O delinquente, que tentou tomar a mochila da vítima, era um adolescente de 17 anos que, poucos dias após o ato, completou 18 anos. Depois, menos de três semanas do primeiro caso, na cidade de São Bernardo do Campo, uma dentista de 47 anos teve o consultório invadido enquanto clinicava e foi queimada viva pelos criminosos porque possuía apenas R$ 30,00 disponíveis. Pura sordidez.
Ambos os episódios trouxeram à tona novamente pedidos polêmicos de, primeiro, maioridade penal e, a seguir, pena de morte. Como cenário de fundo destes dois fatos, as pesquisas da SSP – Secretaria de Segurança Pública, divulgadas no final do mês de Março. Pelo sétimo mês consecutivo a cidade de São Paulo havia registrado um aumento no número de homicídios dolosos. Em fevereiro, a capital paulista teve 89 crimes, um aumento de 14,1% em relação ao mesmo período do ano passado, onde o número registrado foi de 78 crimes. Também aumentou os números de latrocínios (roubo seguido de morte), que foram de 15 em fevereiro contra 7 no mesmo período de 2012, um aumento de 114,2%. Também tiveram elevação os estupros e os roubos. No meio do tiroteio, o Datafolha estampou a opinião pública: 93% dos paulistanos concordam que uma pessoa deve responder criminalmente por seus atos a partir dos 16 anos, ampliando o ‘placar’ da mesma pesquisa feita anos anteriores. A população está, evidentemente, muito assustada com toda a violência do quotidiano.
Tocado pela situação, o governador de São Paulo foi até Brasília para pedir mudanças no ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente e no Código Penal, na intenção de combater a criminalidade. Deve ter mudado de opinião, como a que emitiu em 18/01, quando disse que “sensação de insegurança é normal”, comparando a situação da violência entre a cidade e o país. Mas, será mesmo que, primeiro, a maioridade penal resolveria a questão dos menores desajustados? Baixando a idade para forçar a penalização, se acalmariam os instintos selvagens dos jovens? O jovem infrator, ele é bárbaro por natureza, isto é, nasceu assim? A resposta é mesmo, então, acumular essa gente na cadeia?
Segundo o promotor da vara da Infância e da Juventude de São Paulo, Thales Cezar de Oliveira, a Fundação Casa já trabalha no limite de suas condições, não suportando mais o aglomerar de pessoas em suas dependências. As mudanças poderão em poucos anos triplicar a população e gerar uma superlotação, o que seria algo contraproducente, porque o governo dificilmente conseguiria expandir a estrutura a tempo. Por outro lado, na Fundação Casa, um dado muito importante: latrocínio e homicídio representam menos de 1% dos casos de internação de jovens para cumprimento de medida socioeducativa em S. Paulo, a maioria sendo sim por roubo e tráfico de drogas. Isto induz a outra reflexão: o que leva um moço ao crime? Porque é mau? Porque é vagabundo e prefere arriscar a própria vida ao invés de trabalhar?
Pensemos, por exemplo, nos guetos existentes dentro de S. Paulo. Tão banais que nem são notados. Não nos darão pista para nada? O que se esperar quando promovemos tal discriminação, quando damos as costas para os outros? Na cidade, com seus diversos bairros e regiões, 26 distritos têm indicador igual a zero de leito hospitalar; 56 distritos têm indicador igual a zero de equipamento esportivo; 59 distritos têm indicador igual a zero de centro cultural ou 45 distritos têm indicador igual a zero livro por habitante. A Rede Nossa São Paulo pode fornecer mais informações. Alguém nega que estes dados são também violência contra milhões de moradores na cidade mais poderosa da federação? Claro que a pobreza não leva de imediato a ideia de criminalidade. Mas, esta evidente segregação, não causaria, para muitos, revolta, uma espécie de desejo de vingança? Se minha vida não vale nada, posso arriscar tudo. E que se danem os outros. E mais: se e a sociedade não dá guarida, os marginais dão. O tráfico dá sentido às suas vidas errantes.
Chacinas, que proliferam na região metropolitana de São Paulo, têm endereço quase certo nas periferias, nessa linha ‘sanitária’ que vai se formando. Quem são os autores? Quem julgou a sentença? Onde está a imprensa indignada e investigativa? Onde está o Estado? A pena de morte está instalada oficiosamente nessas ‘quebradas’. O último Mapa da Violência mostra: de cada três mortos por arma de fogo, dois estão na faixa dos 15 a 29 anos. Um jovem negro entre 15 e 25 anos tem chances 127% maiores de ser assassinado que a de um branco na mesma faixa etária. Em 2010, foram registradas 49.932 vítimas de homicídio no Brasil, desses 70,6% eram pessoas negras. Onde estão os responsáveis por tudo isso?
Os estudiosos da violência, como ocorre na USP, já demonstraram há muito que os homicídios não são inúmeras vezes solucionados e acabam se perdendo nas gavetas dos investigadores. A não ser que seja um caso rumoroso. Como estes do mês de abril. A polícia militar não tem hoje a competência para dar conta da situação. Falta muita coisa para que ela funcione: salários dignos, carreira, treinamento, tecnologia, combate a corrupção interna. Isto gera a sensação de impunidade. A dificuldade de ir atrás do infrator e fazer verdadeiramente o que é justo. Contudo, por outro lado, o Instituto Avante Brasil, com base no Ministério da Justiça, entre 2003/2012 afirma que aconteceu uma assustadora ampliação de 78% nos encarceramentos no país. Entre 2001 e 2011, a população brasileira cresceu 9,32% e a população carcerária 120%. São 550 mil presos e um déficit de 250 mil vagas, sendo uma das maiores populações carcerárias do mundo. Exatamente. Com todo o problema, ainda assim, portanto, há ações e crescem as prisões. E estamos melhores por isso? Obviamente que não. O ladrão de galinha fica junto do intelectual do crime, porque seu processo demora para ser avaliado. Pode se contaminar. A cadeia torna-se uma escola da criminalidade. O sistema prisional está falido. É degradante e burro em sua lógica. As deficiências promoveram o surgimento, por exemplo, do PCC entre outras organizações. Não soluciona nada. E isso revela a fragilidade da proposta da maioridade penal. E mesmo da pena de morte, cujas experiências internacionais não causam impacto comprobatório de eficiência, pelo que foi estudado. É tudo muito paliativo como remédio. A coisa é muito mais profunda e complexa na verdade.
Todavia, escancarada é a debilidade da presença do Poder Público, do Estado, no cumprimento de suas funções legais, suas funções constitucionais. Este país tem uma história de grande desigualdade que até hoje não foi reparada. Algo estrutural, onde floresce a hipocrisia.
Em 2011, dados oficiais do governo federal, apontavam ainda, em pleno século XXI, 36 milhões de miseráveis em todo território. País que está entre as 10 maiores economias do mundo. Uma sociedade do abuso de poder, dos coronéis, do colarinho branco, da ‘carteirada’, do ‘sabe com quem está falando?’, daqueles que a lei serve para os outros, não para si e seus amigos nas relações quotidianas, misturando pessimamente o público e o privado. Somos uma sociedade cruel, competitiva, ostentatória, que pisa nas camadas menos favorecidas e se indigna quando esta passa a andar de avião ou ir a shopping centers. Pobre tem que ser contido, resignado, compreensivo, esperançoso numa resolução divina para seus destinos. Se há criança nas esquinas fazendo malabares com nariz escorrendo, meninas vendendo o corpo, gente jogada na sarjeta ou fumando crack, o problema é só deles. Fechemos as janelas dos automóveis e metamos a marcha adiante. Fumaça na cara desses feios. Aliás, que se higienize o espaço para não ferir nossa suscetibilidade. Tudo muito natural. Sociedade antidemocrática, para não dizer ‘protofascista’, como apontou certa vez a filósofa Marilena Chauí. É só querer enxergar. Coisas como maioridade penal são, sim, mais uma página dessa violência usual contra os menos favorecidos, culpados pela própria sina. São Paulo, 26 de abril de 2013.
Prof. José de Almeida Amaral Júnior
Professor universitário em Ciências Sociais; Economista, pós-graduado em Sociologia e mestre em Políticas de Educação; Colunista do Jornal Mundo Lusíada On Line, do Jornal Cantareira e da Rádio 9 de Julho AM 1600 Khz de São Paulo.
4 comentários em “Crimes hediondos na Sociedade da Barbárie”
È compreensível que fiquemos assustados , indignados e revoltados com esses crimes hediondos.
A violência tem tomado proporções alarmantes porque o Estado é omisso e a sociedade se indigna pouco contra o descumprimento da nossa lei maior, a Constituição Federal em seus princípios fundamentais… Se essa lei fosse cumprida com rigor e responsabilidade pelos nossos governantes, não estaríamos agora vendo, novamente, a crescente exigência por mais rigor na lei, principalmente em relação aos adolescentes envolvidos em crimes.
O Estado falha porque sempre investe nos efeitos e não nas causas. Reduzir a maioridade penal é tratar o efeito e não a causa é isentar o Estado do compromisso com a construção de políticas educativas e de atenção com a juventude.
Não é com o aumento de penas, prisões ou medidas de caráter estritamente punitivo que o problema da violência e suas diversas manifestações será resolvido, são as políticas sociais que possuem real potencial para diminuir o envolvimento dos adolescentes com a violência.
Interessante matéria publicada sobre a Fundação Casa
Vale conferir:
http://www.brasildefato.com.br/node/12800
Mais do que um artigo, quase uma grande reportagem, professor!
Penso que a maioridade penal é uma das medidas que deve ser pensada e adotada. Mas nada adianta se não reverem o sistema educacional, a distribuição de renda, a corrupção em tantos setores… Chega a ser difícil ser otimista. Parece que a mente de quem toma as ações é limitada, como no caso da violência contra aquele casal gringo no Rio: proíbem a circulação das vans, mas não fazem nada para conter a criminalidade. Parece o lance da mulher que pega o marido com a amante no sofá, e queima o sofá. Incoerente, no mínimo.
E esse é o país que sediará dois eventos grandiosos…
Abraços, 🙂
Elaine.
Mudanças Interestaduais para todo Brasil.