Por Prof. José de Almeida Amaral Júnior
Durante a semana em que se decidiam as eleições municipais, correu pela rede social um texto que ganhou destaque e abordava algo bem diferente do pleito envolvendo petistas e tucanos na capital paulista. Apresentava alarmante denúncia referente aos índios Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul – MS. Eles estariam se suicidando por causa das pressões sofridas contra a posse de suas terras. A notícia foi multiplicada na internet, ganhou força e, assim, a grande mídia dignou-se a destacar com mais ênfase a questão. Verificou-se, então, que eles não estão propostos ao suicídio, como dizia a mensagem que circulava e que foi explicado pelo Cimi – Conselho Indigenista Missionário. Mas, também a condição real não é nada menos cáustica, ou seja, eles estão sim dispostos a cair resistindo pelas suas terras, com a dignidade de guerreiros que sempre foram. Morrer coletivamente no contexto da luta pela terra, morrer todos nela, sem jamais abandoná-la.
O caso refere-se a decisão liminar que obrigava a saída do grupo de uma área na fazenda Cambará, em Iguatemi, extremo sul de MS. A expulsão dos índios havia sido solicitada à Justiça em janeiro deste ano pelo dono da fazenda e foi aceita em setembro pelo juiz federal Sérgio Bonachela, de Naviraí/ MS. No último dia 30 aconteceu uma suspensão da liminar, determinada pela juíza federal Cecília Mello, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, com sede em São Paulo. Ela entendeu que a região é tradicionalmente ocupada pelos índios e “não atrapalha em absolutamente nada a atividade da fazenda Cambará, até porque a área total das terras é de mais de760 hectares”. E disse mais: “não se tem, até o presente momento, a confirmação de quem são os verdadeiros proprietários das terras”. Por incrível que pareça, a Funai – Fundação Nacional do Índio, ainda faz estudos para delimitar terras indígenas em um trabalho que começou no ano de 2008 e até agora não foi concluído. E assim, enquanto não terminarem as avaliações, os Guarani-Kaiowá ficam aguardando dentro de um espaço equivalente a um hectare ou dez mil metros quadrados. Uma espera que gera tensões. E demonstra imensa negligência do poder público.
Essa disputa fundiária que ganhou notoriedade preocupa o governo federal que teme o conflito sangrento entre índios e fazendeiros. A promessa de resistência levou muitas pessoas a lembrarem que essa tribo tem efetivamente um histórico de suicídios. Segundo dados do Ministério da Saúde ocorreram 555 entre 2000 e2011. Ataxa de suicídios entre os Guarani-Kaiowá é de 62,01 por 100 mil habitantes, considerado elevadíssimo para a OMS – Organização Mundial da Saúde, cuja referência estabelece a partir de 12,5/100 mil já uma taxa ruim. O Ministério Público diz que a média nacional atinge a taxa de 27,1. Em síntese, um absurdo que se tenha chegado a esse ponto. Um desleixo da administração pública.
A realidade é que o governo brasileiro passou tempos cedendo áreas para fazendeiros estenderem suas terras, indo aos limites da fronteira, e agora nota o resultado das ações praticadas sem as devidas considerações aos povos tradicionais. Os Guarani-Kaiowá estão espalhados por várias áreas no MS e defensores da causa indígena alertam que muitos deles vivem cercados por pistoleiros, sendo constantemente atacados.
Há dias, conforme o jornal Brasil de Fato, o sitio Wikileaks divulgou conteúdo de textos do governo do MS em encontro com autoridades dos EUA que visitavam a região, reforçando a apreensão da comunidade indígena, que se sente absolutamente não respeitada pelas esferas publicas. No material, o governador local zombou da idéia de que a terra, num estado como MS, de forte atividade agrícola, poderia ser retirada das mãos dos produtores que cultivam há décadas para devolvê-la aos grupos indígenas. Nota-se ser comum autoridades municipais e estaduais reclamarem dos subsídios públicos dados aos índios, afirmando que eles deveriam ‘aprender a trabalhar como qualquer um’. A demanda básica dos Guarani-Kaiowá é pela demarcação de terras: atualmente esse povo, o segundo maior do país, soma 43,4 mil pessoas, vivendo em pouco mais de 42 mil hectares.
É profundamente lamentável que, ainda hoje, mais de 500 anos após o ‘achamento’ deste imenso território pelos europeus, uma política digna não tenha sido estabelecida claramente por qualquer governo a favor das comunidades tradicionais. Este caso dos Guarani-Kaiowá é um simples exemplo entre vários. Um histórico crime reiterado a todo instante.
Os índios são os habitantes originais deste país. Foram invadidos, brutalizados, tornados escravos e transformaram-se em valiosa mercadoria para os senhores de engenho, junto dos negros, na indústria açucareira ou para a lida diária nas roças e casas dos seus senhores. Até serem trocados pela força de trabalho imigrante. São vistos como um bloco comum, chamados genericamente de ‘índios’, não tendo suas diversas diferenças culturais respeitadas, suas nações identificadas. Permanecem desprezados como sendo atrasados, congelados no tempo. Ignorados na riqueza de suas mais de 200 etnias, falando 188 línguas diferentes. Aliás, para o brasileiro existir como povo, é impossível não considerar o ingrediente básico desta gente. Estão na origem dos caboclos na Amazônia, dos sertanejos nordestinos, dos caipiras, dos caiçaras e dos gaúchos. Apenas para recordar, os paulistas nasceram com a prole de João Ramalho e Antonio Rodrigues, que viviam entre os Tamoios antes de Nóbrega e Anchieta chegarem ao Planalto de Piratininga. O lendário Domingos Jorge Velho, bandeirante caçador de índios e destruidor do quilombo de Palmares era, ele próprio, um mameluco com várias concubinas.
Em um mundo de absoluto desequilíbrio ecológico, econômico e social produzidos pelo progresso dos chamados ‘povos civilizados’, cada vez mais se sente a gritante violência da ausência de uma maior atenção para com os grupos tradicionais e o tanto que poderíamos aprender e trocar com sua visão de mundo se, evidentemente, reduzíssemos um pouquinho de nossa soberba e ganância.
Nota de solidariedade ao povo Guarani-Kaiowá pode ser vista AQUI.
São Paulo, 9 de novembro de 2012
Prof. José de Almeida Amaral Júnior
Professor universitário em Ciências Sociais; Economista, pós-graduado em Sociologia e mestre em Políticas de Educação; Colunista do Jornal Mundo Lusíada On Line, do Jornal Cantareira e da Rádio 9 de Julho AM 1600 Khz de São Paulo.