No juramento solene da tomada de posse do Presidente Cavaco Silva – nos dois juramentos, claro – foi possível ouvir-lhe estas palavras: juro cumprir e fazer cumprir a Constituição da República Portuguesa. Uma frase que é parte de um texto global mais vasto, mas que vale por si mesma, à revelia dos contextos que, invariavelmente, se costumam depois apresentar como atenuadores da realidade concreta da vida em sociedade.
Ora, a Constituição da República indica que o Estado deve pôr em funcionamento, e assim manter, como é óbvio, um Serviço Nacional de Saúde, universal e tendencialmente gratuito, o que se compreende muitíssimo bem, dado que o direito de recurso a cuidados de saúde é o meio essencial à defesa da vida nas situações mais difíceis para os que ainda a possuam.
Até à tomada de posse do atual Governo esta realidade foi-se mantendo viva, conseguida, para lá de aspetos vários ligados a má gestão, à aplicação do princípio de que tal serviço essencial à defesa da vida é mantido pelos impostos pagos pelos contribuintes, recolhidos proporcionalmente aos respetivos vencimentos, mas aplicados de um modo gratuito, para lá da realidade da riqueza de cada um.
Tornou-se, porém, evidente, e logo desde a chegada de Pedro Passos Coelho à liderança do PSD, que um dos seus objetivos essenciais era o de privatizar este serviço, dado que toda a gente precisa de cuidados de saúde, o que permitiria, pois, conseguir uma verdadeira mina para os interesses privados. E, como teria de dar-se, em face da gravidade de uma tal proposta, o que os dirigentes do PSD fizeram foi desmentir o evidente.
Bom, o tempo passou e a realidade começa a tornar-se cada dia mais dolorosamente evidente: o Serviço Nacional de Saúde, universal e tendencialmente gratuito, insubstituível conquista da Revolução de 25 de Abril e da Constituição de 1976, caminha, já rapidamente, para a sua redução a quase nada. E, para lá da prática política, temos ainda os mil e um programas televisivos especialmente estruturados para dar apoio a tais políticas. Foi, precisamente, o que anteontem se pôde ver com uma nova mesa de debate com supostos senadores da nossa República, quase todos do PSD, ou dele próximos, e todos, incluindo António Vitorino, com uma propensão fortemente liberal, ou mesmo neoliberal.
Desta vez, os tais ditos senadores foram Manuela Ferreira Leite e Francisco Balsemão, ambos do PSD, António Barreto e Manuel Sobrinho Simões, já muito próximos deste partido, e António Vitorino, que se move em torno de uma visão já liberal da organização da sociedade. Eu diria assim: se Vitorino fosse socialista, eu seria comunista. E todos estes cinco ditos senadores moderados por Ana Lourenço, que só agora dá mostras de grande comiseração em face do que ali ia escutando. Como se alguém com um mínimo de conhecimentos e de argúcia não tivesse compreendido, e desde sempre, que era esta a grande finalidade dos partidos da atual coligação governativa!
Ora, a dado passo, invocando a necessidade de se não imporem tabus, António Barreto questionou esta possibilidade: e se os fumadores não tivessem direito a cuidados de saúde gratuitos? Mas disse ainda mais: chegadas as pessoas aos setenta anos, ou se tinha dinheiro para pagar esses cuidados, ou a vida seguiria o seu rumo!!
Com toda a sinceridade, eu de Barreto de há décadas que espero tudo e, como já escrevi, por exemplo, sobre Alberto Costa, nunca o escolheria, nas primeiras mil escolhas, para ministro de um Governo por mim liderado. Nem a Barreto, nem a Henrique Medina Carreira, porque só iria buscar indeterminação, dúvidas constantes, e queixas de mil e um, insatisfeitos com as suas intervenções políticas. Foi sempre assim.
Mas de Manuela Ferreira Leite, em boa verdade, não esperava que apoiasse a ideia de que, chegado aos setenta, se não se tiver dinheiro para pagar, pois, paciência! Nem eu imaginava nem, aparentemente, a moderadora, que qualificou tal metodologia de abominável. Manuela era a líder do PSD que um dia disse que, consigo à frente do Governo, ninguém deixaria de estudar por não ter dinheiro…
Num ápice, Francisco Balsemão secundou Manuela Ferreira Leite e Barreto, dizendo que é essencial tratar este tema e quanto mais rapidamente melhor. Ao mesmo tempo, Manuel Sobrinho Simões ainda tentou dar uma explicação técnica para se sair do imbróglio ali suscitado – são vários, na Europa, os países que não têm este dito imbróglio…–, sugerindo uma aposta forte nos cuidados primários de saúde, mas a verdade é que terá ficado a falar para ninguém. Por fim, António Vitorino. Bom, disse simplesmente nada. E isto depois de ouvir ali Barreto tecer críticas às críticas do PS a este Governo! E nem se terá dado ali conta do olhar superior de Manuel Ferreira Leite, perante o que ele dizia, como se fosse algo sem nexo! Será que António Vitorino e o seu partido não conseguem enxergar que o programa se destina a propagandear a política neoliberal deste Governo?!
Ficam-me agora estas dúvidas: que irá dizer sobre o que ali foi sugerido – no fundo, a recusa do dever de auxílio a quem correr risco de morte, desde que tenha idade avançada e não tenha meios para pagar – a Ordem dos Médicos? E a Igreja Católica? Será que ficará insensível perante o que é, de facto, uma prática de eutanásia, mas por abandono? Sobretudo neste segundo caso, nada me custa acreditar que o que sobrevirá, do lado da Igreja Católica, seja o silêncio. Uma vergonha, de há muito por mim prevista e num domínio sobre que chamei já a atenção de alguns dos nossos bispos, e por escrito. Uma vergonha!! E dos PS? E do Presidente Cavaco Silva? Não tem uma palavrinha sobre um tal tema abominável?
Hélio Bernardo Lopes
De Portugal