Mundo Lusíada com Lusa
Em Coimbra, o Presidente português considerou hoje que nunca se está à altura de Camões e que o poeta nunca é devidamente celebrado, referindo como ao longo dos tempos foi usado para propaganda, com as suas palavras desvirtuadas.
Marcelo Rebelo de Sousa falava na sessão solene evocativa que marcou o arranque das celebrações dos 500 anos do nascimento de Luís de Camões, na Universidade de Coimbra, inserida no programa oficial do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas.
“Nunca estamos à altura da grandeza de Camões, nem da grandeza de uma ideia de Portugal, nunca citamos ou celebramos corretamente ou de modo suficiente, nunca temos presente o sentido exato dos versos e da história, ou dos versos na história”, afirmou.
Para o chefe de Estado, no entanto, não se deve deixar que qualquer ceticismo “possa atingir comemorações concretas ou abstratas”, nem “o poeta em si mesmo”, de quem, observou, pouco se sabe, “e a quem já nada afeta”.
“Há em Camões tantos labirintos e fascínios, que faríamos mal em acentuar o fascínio do óbvio ou do aparentemente óbvio. Como faríamos mal se nos perdêssemos nos labirintos textuais, exegéticos ou ideológicos”, aconselhou.
Marcelo Rebelo de Sousa discursava perante o presidente da Assembleia da República, o primeiro-ministro, os presidentes do Supremo Tribunal Administrativo e do Tribunal de Contas, o presidente da Câmara Municipal de Coimbra e o secretário-geral do PS e os ministros de Estado e dos Negócios Estrangeiros e da Cultura, entre outros.
No início da sua intervenção, falou do aproveitamento político de Camões ao longo dos tempos, com as suas palavras desvirtuadas e citadas fora de contexto.
“A política, diz-se, usa Camões como uma espécie de abonação, de dicionário, em defesa de determinadas ideias. De modo que tivemos o Camões independentista, o Camões devoto, o Camões do Romantismo, o Camões dos republicanos em tempo de monarquia, o Camões colonial do Estado Novo, e assim por diante”, referiu.
Segundo o Presidente da República, a ambiguidade e complexidade da linguagem poética fazem com que a tentativa de usar “Os Lusíadas” como propaganda “reduza quem o faz, deixando intacto o poema”.
Na opinião do chefe de Estado, é evidente um “vigor renascentista, humanista em sentido amplo, progressista, naquela narrativa” e, a par da “vibração humana e patriótica que anima o poema, ninguém pode ignorar os descontentamentos, as agruras e os desconcertos do texto camoniano”.
“De Camões, o épico, se disse que com a idade deu algum tanto em melancólico”, observou, questionando: “E como poderia haver viagem, descoberta, exílio ou até glória, sem melancolia? O que julgam saber os críticos pós-coloniais que Camões não soubesse já? O que entendem agora que escapasse então ao seu entendimento?”.
No fim do seu discurso, Marcelo Rebelo de Sousa defendeu que “talvez o Camões de cada um não se comemore em público”, mas que “o Camões de todos” deve ser comemorado: “Na nossa língua, que ele tanto prezou, na nossa memória, de que ele tanto cuidou, ou na certeza antiga de sermos, ao mesmo tempo, cidadãos do mundo e portugueses”.
“Camões desde o século XVI que é essencial para Portugal. Portugal desde o século XII que é essencial para Camões. Que para sempre viva a Universidade de Coimbra, para sempre viva Camões, para sempre viva a língua portuguesa, para sempre viva Portugal”, concluiu.
Câmara
O presidente da Câmara de Coimbra, que recordou que a cidade já foi romana e árabe, apelou hoje à rejeição de “todas as desumanidades, insensibilidades e xenofobismos”, num país que é uma “salada genética” multicultural.
“Todos temos o direito à realização, ao trabalho, à felicidade, ao respeito e à paz, e temos de rejeitar todas as desumanidades, insensibilidades e xenofobismos”, afirmou José Manuel Silva, na cerimônia.
Para o autarca, hoje é “um dia em que devemos recordar que os portugueses resultam de uma curiosa receita genética”, entre celtas, iberos, lusitanos, judeus, berberes, árabes e africanos, entre outros, sendo fundamental reafirmar-se “que só há uma raça humana”.
Na sua intervenção, o presidente da Câmara de Coimbra recordou a “salada genética multicultural” que caracteriza os portugueses, dando nota disso mesmo na própria cidade, “romana Aeminium e a árabe Qulumbriya”.
“É através da língua que transmitimos a nossa história, as nossas tradições e a nossa visão de um mundo para todos e para todas, sem exclusões”, vincou.
José Manuel Silva considerou que o 10 de Junho é “um momento de aceitação tranquila” do passado do país, mas também de “análise crítica e exigente” do presente e de reflexão “perseverante e escrupulosa” sobre a construção de um futuro comum.
Abordando o presente, o autarca aproveitou o momento para defender que a “coesão nacional tem de ser uma estratégia política concreta e devidamente financiada, não apenas o nome de um ministério”.
Durante o seu discurso, numa plateia onde estavam presentes o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, e o primeiro-ministro, Luís Montenegro, José Manuel Silva reafirmou a vontade de resolver problemas que “têm preocupado” Coimbra, como a manutenção do Tribunal Administrativo e Fiscal, a deslocalização da prisão, a reposição da carreira de agente único dos Transportes Urbanos ou a construção de uma escola de artes e de um grande centro de arte contemporânea, entre outros.