João Barrento, Prêmio Camões, considera língua portuguesa “bastante maltratada”

Mundo Lusíada com Lusa

 

Neste dia 20, o escritor e tradutor João Barrento, vencedor do Prêmio Camões 2023, considerou que a língua portuguesa é “bastante maltratada”, na maneira como as pessoas falam e na imprensa.

Em declarações aos jornalistas, à margem da cerimônia de entrega do Prêmio Camões 2023, no Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa, Barrento disse reconhecer “a cada dia das mais diversas maneiras, no modo como as pessoas falam, na própria imprensa, que a língua portuguesa está a ser bastante maltratada”.

“Também há uma influência enorme do latim vulgar de hoje, que é o inglês e que tem uma intervenção muito forte nas nossas línguas. Há um descuido, e provavelmente o universo digital terá alguma coisa que ver com isso, porque desde os primeiros anos de aprendizagem nas escolas estamos imersos nesse universo digital, que não é propriamente o melhor para a aprendizagem e um uso mais correto da língua. Penso que isso tem uma grande influência”, afirmou.

No discurso de aceitação do prêmio, João Barrento voltou a aflorar a questão: “As palavras que usamos têm corpo, coisa hoje cada vez mais esquecida e ignorada por quem as usa”.

“Senti isto de forma muito clara a voltar a ler a obra de Camões ou Jorge de Sena, Armando Silva Carvalho, Alexandre O’Neill, Vasco Graça Moura, Maria Gabriela Llansol e tantos outros”, partilhou.

Num discurso no qual citou Camões, David Mourão Ferreira e Vasco Graça Moura, João Barrento, de 84 anos, partilhou que ao longo da carreira nunca deixou “de ser aprendiz nos domínios do ensaio, crônica, diário ou tradução”.

Aos jornalistas, confidenciou que ao saber que tinha sido distinguido com o Prémio Camões 2023 a primeira reação “foi de surpresa”.

“Não que não tenha tido empenho real na minha vida às coisas que também interessaram a Camões no seu tempo, não porque não tenha olhado para o mundo como ele olhou, mas porque me achei insuficientemente digno de um prêmio como este e com o nome que ele traz”, explicou.

Para João Barrento, “a dimensão do prêmio Camões e daqueles que já o receberam” é “demasiado grande” para se comparar com eles.

“São grandes escritores, os nossos maiores poetas e escritores. Senti-me, humildemente, um pouco abaixo deles. Fizemos coisas diferentes, a escrita é outra, algumas razões terá havido para o júri me atribuir este prêmio, que agradeço”, disse.

Grande parte da carreira de João Barrento tem sido dedicada à tradução, sobretudo de obras em língua alemã. “A tradução é uma forma de escrita muito particular, é trazer o outro à nossa casa”, referiu.

Em representação do presidente do júri do Prêmio Camões 2023, a ensaísta Inocência Mata lembrou que esta foi a primeira fez que o Prêmio Camões homenageou um tradutor e salientou que João Barrento “é um tradutor de referência”.

Para explicar o fato de tal só ter acontecido ao fim de 35 anos de prêmio, Inocência Mata referiu que “talvez os jurados não tivessem consciência que a tradução é também trabalho de criação”.

“A tradução é uma ponte que conecta culturas, amplia o acesso a ideias, pensamentos e histórias que de outra maneira estariam confinados a uma única língua”, disse, acrescentando que também “preserva identidade cultural de diferentes comunidades, garantindo que as suas vozes sejam ouvidas globalmente”.

Inocência Mata falou ainda de João Barrento como uma “ponte vital entre literaturas europeias, principalmente a alemã” e “um dos pilares da literatura contemporânea em Portugal”, a quem faltava apenas o Prêmio Camões para juntar a outras importantes distinções que já recebeu. “Esta distração foi agora corrigida”, afirmou.

João Barrento foi distinguido com os prêmios Calouste Gulbenkian da Academia das Ciências de Lisboa, o Grande Prémio de Tradução do PEN Clube Português/Associação Portuguesa de Tradutores, pela obra de Goethe e pela tradução integral de “Fausto”, o Prémio de Ensaio Jacinto do Prado Coelho, o Prémio D. Diniz, da Casa de Mateus, e o Grande Prémio de Crónica da Associação Portuguesa de Escritores (APE), pelo livro “A Escala do Meu Mundo”.

A ministra da Cultura, Dalila Rodrigues, lembrou hoje que a entrega do Prémio Camões a João Barrento acontece “num ano particularmente camoniano, em que finalmente se apresentou o programa” das comemorações dos 500 anos do poeta.

Além disso, este ano celebram-se os 50 anos do 25 de Abril de 1974 e o Prêmio Camões “é entregue a alguém que desde sempre empenhado na luta pela liberdade da palavra e desenvolvimento de um pensamento crítico”.

“Estamos aqui não apenas para homenagear um intelectual de exceção, mas também um mestre da língua portuguesa”, afirmou Dalila Rodrigues, recordando também o papel de João Barrento como “professor de várias gerações de alunos” e “protagonista ativo, lúcido e militante desta aventura coletiva a se chama Portugal”.

Presidente

O Presidente português entregou o Prêmio Camões 2023 ao ensaísta, tradutor e crítico literário João Barrento, que elogiou, considerando-o “um grande criador”, com uma obra que “é exemplo de resistência ao indiferentismo desmemoriado”.

No seu discurso, o chefe de Estado, Marcelo Rebelo de Sousa, elogiou também o galardoado, professor universitário, como “grande pedagogo” e defendeu que merece o Prêmio Camões por tudo o que ensinou e escreveu e “pelo exemplo que esse sentido de vida é no presente e para o futuro”.

“Por isso, certamente por isso, o Presidente da República Federativa do Brasil [Lula da Silva] subscreveu, entusiasta, a escolha do júri. O Presidente da República Portuguesa a essa escolha aderiu, sentindo que se estava a homenagear um grande criador da nossa literatura, na nossa literatura, na nossa afirmação como Portugal”, afirmou.

Segundo o Presidente da República, “a obra de João Barrento é exemplo de resistência ao indiferentismo desmemoriado que denuncia” e nela, desde os primeiros ensaios até agora, “há uma coerência, há uma consistência, há uma densidade, presente em todas as buscas de sentido, do ensaio à poesia, e sempre e também na tradução, que é uma recriação literária”.

Marcelo Rebelo de Sousa apontou-lhe como característica “um duplo tom”, por um lado “o tom apocalíptico” e por outro “o tom resistente”.

“O apocalipse – talvez este termo seja demasiado tremendista – consiste num processo que denúncia, de perda da memória e da densidade cultura, de superficialidade, de imediatismos mediático, de ausência de pensamento crítico, para o qual a própria imprensa muito contribuiria. É, em suma, o lamento profundo de um intelectual pelo desaparecimento dos intelectuais no espaço público”, descreveu.

“Simultaneamente, nunca se eximiu João Barrento de tarefas dissidentes, refratárias ao consenso”, acrescentou.

O Presidente da República salientou que João Barrento recebeu “quase todos os prémios mais relevantes em Portugal: o Calouste Gulbenkian, o Prémio de Ensaio Jacinto do Prado Coelho, o Prémio D. Dinis, sucessivos prémios de ensaio, crónica e tradução da Associação Portuguesa de Escritores e do PEN Clube”.

“Reconhecido pelos seus pares, o público de literatura deve-lhe boa parte do contacto recente em português com autores fundamentais da língua alemã”, realçou.

No seu entender, “o fato de ter vencido o Camões é significativo de um entendimento alargado deste prémio, que além de poetas e romancistas também premiou críticos e ensaístas decisivos, como Eduardo Lourenço e António Cândido, valorizando estes gêneros enquanto gêneros literários, menos visíveis do que outros, mas de extrema importância no longo curso”.

“Diria, então, que nem o apocalipse é uma fatalidade nem a resistência é fútil. Se às vezes duvidamos de que a história seja mestra da vida, João Barrento diz-nos que a ausência de história é que não é mestre de nada”, comentou Marcelo Rebelo de Sousa.

Já a ministra da Cultura do Brasil, Margareth Menezes, numa mensagem em vídeo, destacou o trabalho de João Barrento como tradutor, algo que “enriquece a língua portuguesa e amplia horizontes”.

A governante terminou o discurso apelando a “mais livros e menos armas”.

João Barrento nasceu a 26 de abril de 1940 em Alter do Chão.

Licenciou-se em Filologia Germânica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, tendo publicado diversos livros de ensaio, crítica literária e crônica.

Foi leitor de Português na Universidade de Hamburgo e leitor de Alemão na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e professor de Literatura Alemã e Comparada na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

Como tradutor de língua alemã, transpôs para português dezenas de autores, particularmente de poesia, da expressão mais antiga à mais moderna e contemporânea, além de obras de ficção, filosofia e teatro.

O Prêmio Camões de literatura em língua portuguesa, instituído pelos Governos de Portugal e do Brasil, foi atribuído pela primeira vez em 1989, ao escritor português Miguel Torga.

Segundo o texto do protocolo constituinte, assinado em Brasília, em 22 de junho de 1988, e publicado em novembro do mesmo ano, o prêmio consagra anualmente “um autor de língua portuguesa que, pelo valor intrínseco da sua obra, tenha contribuído para o enriquecimento do patrimônio literário e cultural da língua comum”.

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